Trair e delatar é só encarcerar

Reflexões sobre a voluntariedade dos colaboradores presos pela Operação Lava Jato

Desde 17.03.2014, lemos e ouvimos notícias relacionadas à “Operação Lava Jato” no Brasil e do mundo. Ao longo desses três anos e 39 fases, foram diversos mandados de prisão, busca e apreensão, sequestros e bloqueio de bens e valores, e centenas, mas literalmente centenas, de delações premiadas.

Na última semana, a colaboração premiada (como é chamada pela Lei 12.850/13) retornou às rodas de conversa, pois, em 14.04.2017, o Supremo Tribunal Federal liberou a temida “A lista de Fachin”, disponibilizando os vídeos com os depoimentos dos 77 executivos da Odebrecht, iniciando a 2ª super temporada da série “Delações e Traições”, visto que a 1ª temporada veio de maneira fragmentada com delações pontuais e não tão divulgadas (pois tramitam ou deveriam tramitar em segredo de justiça).

A colaboração premiada não é algo recente na humanidade. Há estudiosos do tema que afirmam que a traição de Judas a Jesus Cristo, em troca de 30 moedas de prata, pode ser encarada como uma forma de delação premiada. Em território nacional, considerando o direito positivado, a delação pode ser encontrada nas Ordenações Filipinas, que concedia perdão ou recompensa, a depender do caso, ao delator dos crimes de lesa-majestade (Livro V, título VI, nº 12 e título CXVI, nº 01).

Com a proclamação da independência, a legislação oriunda de Portugal foi, gradativamente, substituída e a delação premiada deixou de ser contemplada no ordenamento jurídico brasileiro até 1990, quando o instituto resurgiu com a expansão da legislação penal extravagante e, em apenas uma década, passou a ser previstas por diversas leis, por exemplo, Lei dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/90), Lei dos crimes contra a ordem tributária e econômica (Lei nº 8.137/90), Lei contra o crime organizado (Lei nº 9.034/95), Lei nº 9.080/95 que acrescentou o benefício aos crimes contra o sistema financeiro nacional, Lei de lavagem de capitais (Lei nº 9.613/98), Lei de proteção a vítimas e testemunhas (Lei nº 9.807/1999) e, no Código Penal, a Lei nº 9.269/96, incluiu o §4º, do art. 159, para o crime extorsão mediante sequestro.

A justificativa para a o acolhimento do instituto é a dificuldade de apuração das infrações em razão da ausência de efetivo e conhecimento técnico específico dos órgãos de persecução penal para compreender a estrutura e complexidade das organizações criminosas.

Em linhas gerais, todas as leis mencionadas concedem benefícios àqueles que colaborarem espontânea e voluntariamente com a persecução penal, de forma a levar ao esclarecimento de autoria e/ou coautoria delitiva, recuperação total ou parcial de bens, direitos ou valores obtidos ilicitamente e localização de eventuais vítimas.

Já os acordos de colaboração premiada, no âmbito da “Operação Lava Jato”, foram firmados com base na lei nº 12.850/13 que, em seu artigo 4º, prevê: “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal…”, desde que as informações permitam a produção de um ou mais dos resultados indicados pelos incisos I a V do mesmo artigo.

O legislador foi claro ao estabelecer, como requisito para o acordo de colaboração premiada, a voluntariedade do agente, ou seja, o delator deverá colaborar por vontade ou iniciativa própria; sem sofrer qualquer coação física ou psicológica que altere sua liberdade de agir.

Ora, não é o que temos visto nas delações da “Operação Lava Jato”, pelo contrário, as autoridades parecem ter adotado o provérbio popular “passarinho canta quando está na gaiola”, pois a operação só prosperou graças aos acordos celebrados por colaboradores presos.

Em 17.03.2014, o doleiro Alberto Youssef foi preso na 1ª fase da “Operação Lava Jato” e, como já não era primário, vislumbrou que a única possibilidade de escapar da prisão seria traindo e delatando seus comparsas. Já Paulo Roberto Costa (ex-diretor da Petrobrás), preso na 2ª fase, conseguiu ser solto por decisão do STF, mas em 11.06.2014 foi preso novamente na 4ª fase da operação, não restando outra alternativa a não ser firmar um acordo de colaboração premiada e entregar os “amigos”.

Com os primeiros “testes” bem sucedidos, os líderes da operação buscaram as prisões de Renato Duque, Augusto Mendonça Filho, Fernando Baiano, Nestor Cerveró, Milton Pascowitch, Marcelo Odebrecht, Otávio de Azevedo, Ricardo Pessoa, Othon Luiz Pinheiro, Delcídio do Amaral, entre vários outros.

Todos eles, após o encarceramento, firmaram acordos de delação premiada. Alguns de maneira mais célere do que outros, talvez indicando uma menor resistência ao sofrimento causado pelo encarceramento e pelo vilipêndio da imagem diante da exposição midiática desproporcional. O último a sucumbir foi o empreiteiro Marcelo Odebrecht, após quase um ano e meio de prisão preventiva.

Nesse contexto, é importante frisar que a voluntariedade para a celebração do acordo de colaboração premiada é prejudicada quando a prisão é usada como uma forma de pressionar o investigado/acusado a firmar um acordo de colaboração premiada.

É preocupante a flagrante ausência do pressuposto da voluntariedade (que está evidente na legislação) nos principais acordos de colaboração premiada. É preocupante, também, a postura do Poder Judiciário ao validar e homologar tais acordos que, de voluntários, não tem nada, pois o delator foi forçado a celebrar por meio do encarceramento.

Com essas novas delações, podemos afirmar que os políticos já não estão mais tão tranquilos assim. A depender do protagonismo no âmbito da “Operação Lava Jato”, os pesadelos com o cárcere já devem fazer parte da rotina e novos acordos de colaboração premiada já devem estar sendo rascunhados para quando o fatídico momento acontecer, pois os fatos recentes indicam que para trair e delatar é só encarcerar!

Por César Eduardo Lavoura Romão e Amanda Bornacina de Castro

César Eduardo Lavoura Romão é advogado, sócio do escritório Aversa Araújo Advogados, professor de Direito Processual Penal na FMU e Mestre em Direito pela PUC-SP.

Amanda Bornacina de Castro é advogada, associada do escritório Aversa Araújo Advogados, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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