Janeiro começou com chuvas fortes. Mas, na manhã do dia 14, uma sexta-feira, até o sol saiu para acompanhar nossa conversa e sessão de fotos com Arthur Kohl. Pelas imagens, você já sabe que se trata do ator brasileiro plural que atua no cinema, teatro e televisão, até porque já deve ter dado boas risadas com os seus esquetes de humor (caso não o tenha feito, corra para o Youtube!). Se não se lembrou ainda, o mote “não é uma Brastemp” vai refrescar sua memória. A origem? Início dos anos 1990, parceria com o colega Wandi Doratiotto para o comercial de eletrodomésticos dirigido pelo também granjeiro Fernando Meirelles. O que você talvez não saiba é que nem a pandemia deteve o intrépido ator, que circula pela região desde a infância. Na ativa gravando filmes e programas de televisão, ele compensa a intensa vida de artista com o sossego de seu atelier, em que se dedica a criar e renovar peças de madeira. Defensor da natureza, do respeito aos outros – inclusive na escolha de papéis – e da vizinhança solidária, ele fala com carinho da família e da casa que construiu nos anos 1980, bem como da importância do humor para superar os desafios dos tempos que estamos vivendo.
Qual o impacto destes dois anos de pandemia na sua vida profissional?
Eu tive sorte. Ontem (a entrevista foi feita em 14 de janeiro), estava até às 22h na Vila Leopoldina, no primeiro ensaio para um novo programa de humor do canal Multishow, Casa Paraíso. A série de comédia, que tem o humorista Leandro Hassum no elenco, trata de um grupo de idosos residente numa casa de repouso. Orra, conseguimos gravar, foi muito bom! Participei também de um longa com a Cris (a cineasta Cris D’Amato). Ela é muito boa, é gostoso trabalhar com ela, faz comédias leves. Em 2019, a gente gravou o filme Dez
horas para o Natal. Por conta da pandemia, a película não foi lançada naquele ano e nem no final de 2020, quando ninguém estava indo ao cinema. Saiu no fim do ano passado.
Você foi assisti-lo no cinema? Gosta de ver seus filmes?
Esta é a minha especialidade: eu faço as coisas e não assisto (risos). Eu não tenho problema em ver, assisto na boa, mas é que, quando o diretor ou diretora diz “valeu, está bom, cara”, eu acredito. Até porque, sempre que você vê o filme pronto, pensa “eu podia ter feito diferente”. É como arquiteto, que não acaba o projeto. Ele o abandona, porque está suficientemente bom como está (risos). Sempre tem o que melhorar.
Mal começamos a entrevista e você já está nos fazendo gargalhar!
(risos) Comecei a carreira de forma incipiente, com os quadros de humor da banda Premeditando o Breque no Lira Paulistana, teatro que lançou muita gente. Eu trabalhava como cenotécnico. Aí apareceu a chance. Trabalhei muitos anos com o Premê, eram caras muito engraçados com formação na ECA (a Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo). Quando saímos da bolha paulistana, foi um estouro, um sucesso.
Você também se formou na ECA?
Não, fiz jornalismo na FIAM-FAAM. O curso começou num campus esquisito do Jabaquara e depois mudou para o do Morumbi. Na verdade, eu nunca fui buscar o diploma. Até valia a pena pegá-lo: caso eu fosse preso, teria cela especial (risos) Trabalhei como jornalista na revista Pop, da Editora Abril, enquanto estava na faculdade. Na época, fomos de carro aos Estados Unidos. Ficamos três meses viajando. Saímos pelo Rio Grande do Sul, passamos pela Argentina, fomos aos Andes, Santiago, viramos à direita e fomos embora até a Colômbia. Embarcamos o carro e fomos rumo ao Panamá de avião. Dali, América Central e México. Finalmente, entramos nos Estados Unidos pelo Texas. Corria o ano de 1977, mas a
fronteira já era bem fiscalizada. A ideia inicial era ir para New Jersey, mas virou São Paulo – São Francisco. A viagem foi uma divisora de águas na minha vida. O aprendizado de escrever e fotografar foi incrível. Tenho muita vontade de fazer de novo esta aventura de 19 mil km.
O humor do Premê, então, falou mais forte do que o jornalismo.
Sim, com meu grande parceiro de palco, Renato Caldas. Em seguida, com o colega Wandi Doratiotto fiz Não Mexe com Quem Está Quietinho. Depois, trabalhei por cinco ou seis anos na trupe do Terça Insana, da Grace Gianoukas. Era um exercício formidável. Pensava-se num tema e cada ator escrevia o texto do seu próprio quadro. O retorno era muito bacana, a gente fazia turnê bem forte, de viajar e lotar muito. Era uma fase um pouco pré-stand up. Marco Luque apareceu mais ali. O local lançou muita gente boa.
Lá você fazia o Personal Crimer, entre outros. Por que a resposta do público é tão boa a personagens sem noção?
Era porque eu fazia o personagem com muita convicção. Ele achava que a gente devia ter cursos e dar mais apoio aos criminosos porque eles estavam defasados. O cara vai assaltar alguém num restaurante fino e diz “perdeu, playboy”? Não dá. Na visão do personagem, poucos criminosos falavam dois idiomas. Como assaltar em Copacabana se não souber espanhol ou inglês? (risos) Não era razoável. O humor tem muito disso, você fala de verdades. Tem gente que faz para arrancar risadas e está tudo bem. Mas não é o melhor, a meu ver. Não tinha o deprimido da corte; tinha o bobo da corte, que era o único que podia
falar verdades ao rei. Se na época tivesse um revolucionário que falasse o mesmo
que o bufão, ele seria enforcado. A Grace é um exemplo disto. Ela faz verdadeiramente
o negócio. Você olha os personagens dela e acredita. É o non sense do humor, que sai da linha de pensamento convencional.
Quais clássicos do humor você admira?
Tem o grupo argentino Le Luthier. Agora já está acabando, eles estão ficando velhos. Nada tinha sentido no que estavam fazendo, era hilário. O Monty Python é outro clássico. Eles contaram a história de Cristo (em A Vida de Brian, de 1979) e se o cara for um sujeito radical, não vai entender a ironia. Esses dias, eu me lembrei de uma cena de um filme deles, com os homens que diziam “ni” (Trata-se de um bando de cavaleiros que aterrorizavam quem passasse com a maneira que pronunciavam a palavra “ni”, no filme Monty Python em Busca do Cálice Sagrado, de 1975). É o que os políticos estão fazendo hoje.
E da nova geração?
Hoje em dia está muito difícil competir com os políticos. Veja o Boris Johnson (o primeiro-ministro do Reino Unido e líder do Partido Conservador desde 2019. Enquanto o país era exortado a se isolar para a contenção da pandemia, ele furou as regras de confinamento participando de uma festa em sua residência oficial, Downing Street). É trágico. Eu penso: “Ora, quem faz texto sem sentido sou eu”! (risos) Mas tem muita gente boa, como o Afonso Padilha. Ele é muito popular, um pouco escatológico demais para meu gosto. Mas
ele tem uma característica legal de ter começado casualmente, um cara muito pobre, muito simples, que traz esta ideia do “você sai da pobreza, mas a pobreza não sai de você”. Ele foi atrás de melhorar e hoje faz redação de texto para outras pessoas. E aproveita para falar coisas que acha interessantes, como feminismo e preconceito contra os gays, de uma forma engraçada. Gosto também do Marcelo Mansfield, que tem texto inteligente, e da Ângela Dip, ótima humorista. A gente fez um trabalho um tempo atrás.
Humor, no fundo, é uma coisa séria?
Sim. Os irmãos Marx (Chico, Groucho e Harpo, famosos na primeira metade do século XX) sabiam disto. As pessoas olhavam e diziam: “Como é que o cara está falando o que está falando? Groucho se valia dessa liberdade. E era engraçado. A questão na cabeça das pessoas é: “Onde eu me encaixo nisto?”. É o caso do Seu Chico, na Terça Insana, que faz parte daqueles velhos chatos que sempre voltam ao mesmo assunto. Todas as vezes que a
gente acabava o espetáculo e vinha alguém pedir para tirar fotos, me diziam: “Você
precisa conhecer meu sogro”. “Parece o dono da banca de jornal perto de casa”. “É igualzinho o meu cunhado” (risos). A campanha da Brastemp tinha isso. Na primeira, eram pessoas azaradas porque não compraram Brastemp e um monte de gente se via naquela situação.
Aliás, você se tornou conhecido do público ao participar do comercial da Brastemp com o Wandi. Como é trabalhar com o Fernando Meirelles?
Ele é um cara que não precisa mais do que um pano esticado, uma poltrona e um ator. Em duas horas, resolvia a parada. No dia da gravação do comercial, ele marcou com o Wandi no início da manhã e comigo no final da mesma manhã. Eram oito filmes a serem filmados. O Wandi chegou, me viu e disse: “Puxa, se a gente soubesse (que ia gravar junto) poderia ter combinado de almoçar”. Eu respondi: “A gente pode, o Fernando vai matar isso aqui rapidinho”. Dito e feito. Gravamos. Foi ali que o Fernando contou para a gente que os caras
(da agência) estavam querendo fazer uma peça para cinema. Não teria minutagem e seria a primeira vez a se usar a expressão “Não é uma Brastemp” não para eletrodoméstico,
mas de uma forma mais ampla. Ele disse: “Os caras ainda vão resolver se vão usar ou não, mas a gente já podia gravar e, se rolar, será um cachê a mais para vocês”. Ele tentou nos gravar isoladamente e não ficou bom. Aí teve a ideia de fazer nós dois juntos. Como a gente tinha anos de experiência em improvisar, sentamos apertadinhos na poltrona e ficou legal. Rimos muito ao fazer. Quando o Fernando olhou, disse que estava bom para $#%@¨&. No dia de apresentar para a agência, ele mostrou os oito filmes combinados. Os
caras adoraram. Aí ele apresentou a ideia da peça para o cinema. Os caras gostaram. E ele disse: “Já está filmado, vejam”. Acho que é o primeiro case de filme feito por improviso da história da publicidade brasileira. O Fernando é um gênio.
Como é se tornar um rosto famoso?
Poder e fama são perigosos. Mas eu fiquei conhecido noutro padrão. O que me trouxe mais reconhecimento foi a participação no Rá-tim-bum! (programa infantil da TV Cultura rodado entre 1990 e 1994). Portanto, quem me reconhece hoje em dia é o jovem. Uma vez eu estava almoçando com o Wandi e ele me disse: “Tem uma menina linda olhando para você. Acho que ela está te achando um coroa bacana”. Eu sabia que não era nada disso. De repente, a menina se levantou, veio em nossa direção e disse: “Tio, desculpe incomodar…” Para onde isto vai se ela me chamou de tio? (risos). Depois, como ator, fiz muito Telecurso
(uma tecnologia educacional reconhecida pelo Ministério da Educação, o MEC). Deu orgulho de fazer. Pegava quem não tinha tempo de ir à escola e podia ir avançando nos estudos. Há muita gente que se valeu dele e me reconhece. Tem, portanto, uma coisa de muito carinho envolvida nesses approaches das pessoas, que é mais suave. E há formas criativas de lidar com a fama. Tem um ator que não aguentava mais os paparazzi. Aí ele inventou um figurino de roupa de sair: parecia que usava sempre a mesma. Os paparazzi pararam de persegui-lo. Como ele estava sempre vestido igual, não se podia saber que dia, onde era a foto. Acredito que você cria seus limites.
No Internet Movie Database (IMDb) – a base de dados online de informação sobre cinema, TV, música e games pertencente à Amazon –, você é definido como “an actor, known for Páginas da Vida (2006), Os Desafinados (2008) and O Mecanismo (2018)”. Como é percebido no exterior?
Os Desafinados é um filme do Waltinho (o cineasta Walter Lima Jr., conta com Rodrigo Santoro, Cláudia Abreu e Selton Mello, entre outros) que tem setting nos Estados Unidos e trata da bossa nova. É sobre um quarteto de brasileiros que vai para Nova York tentar a sorte, não dá muito certo, volta e vai para a Argentina na época da ditadura ferrenha. Um dos caras sai para comprar cigarro, a repressão o pega e ele desaparece. Na novela Páginas da Vida, da Rede Globo, o assunto era que o filho queria tirar a guarda do avô (Marcos Caruso) e todo mundo torcia para ele ficar com a criança. Eu interpretei o juiz que tirava a guarda. O caso chegava ao Supremo, em que a juíza era a Eva Wilma (falecida no
ano passado). Nos bastidores, ela brincava comigo, dizendo: “Muito fraca esta sua sentença” (risos). Já na série de televisão O Mecanismo, dirigida pelo Padilha (José Padilha), interpretei o Lula. Todo mundo caiu de pau, mas não era pró lava-jato. Os colegas mais de esquerda reclamaram, mas nós somos atores. Não era, portanto, o meu ponto de vista. Era o do roteirista. Tudo o que eu queria fazer era retratar o Lula de maneira honesta. E o fiz com respeito. A série teve muito sucesso na Netflix. Para gente como eu, que comecei num teatrinho de 80 lugares na Teodoro Sampaio, ter um filme sendo visto por gente no interior da Birmânia é sensacional. Padilha virou uma figura internacional e hoje mora nos Estados Unidos. Ele é um grande diretor. Ninguém é chamado para dirigir Robocop por seus belos olhos.
Você fala de sua família?
Com prazer. É uma família pequena. Tenho três filhas de 37, 24 e 22 anos. Só meninas, cada uma no seu estilo, todas ótimas. A que mora em Princeton, nos Estados Unidos, é tradutora de japonês, apesar da cara sueca. A do meio cursou Rádio e TV na Cásper Líbero e trabalha ligada a eventos esportivos – voltou a morar comigo na pandemia. Já a de 22, se tudo der certo, vai se tornar psicóloga. Estuda no Rio das Ostras, no Rio de Janeiro.
Você conhece e mora na região há muito tempo, não é?
Em 1956, meu avô alemão comprou um terreno no Santa Paula, então uma gleba de fazenda onde cortaram ruas na altura do km 39 da Raposo Tavares. Ele era comerciante em São Paulo, fechava a loja ao meio dia de sábado e vinha para Cotia. Começou a se apaixonar pelo lugar. Quando eu era moleque e vinha para cá com ele, parávamos na única venda que tinha de tudo, a da dona Glória e do seu Augusto, com seus dois bancos de tábua na porta. Eu subia com meu avô, ele entrava para conversar com seu Augusto e me
pedia para ficar na entrada. Se passasse algum carro, era para eu perguntar se a estrada estava dando passagem. Faz tempo, mas não faz 200 anos (risos). Na época, a Raposo Tavares passava dentro de Cotia, onde hoje é o calçadão. Na frente da igreja de Caucaia tinha um armazém grande, onde meu avô parava para pegar coisas. Ele foi comprando terrenos até a chácara completar 13 mil metros.
Você continuou vindo quando cresceu?
Quando eu era adolescente, comecei a usar a casa original. Aos poucos, me distanciei
daqui, comecei a levar a vida em São Paulo. Em 1984, quando nasceu minha primeira filha, tive a oportunidade de comprar um terreno e quis o destino que eu achasse um a 200 metros da chácara de meu avô. Construí e me mudei para cá no final de 1989. Minha avó quis vender a parte de baixo do terreno e uma grande amiga minha comprou. A parte de cima da chácara, um terreno maravilhoso, o Renato (Caldas) comprou. Meu amigão está
no fim da rua. Temos uma hortinha boa, um pomarzinho com pés de laranja. Mexi muito pouco no terreno, tem muita árvore. Ainda tem esse miolo de 4.700 metros da chácara que está à venda. O André Abujamra quase veio para cá. Mas ele é muito urbano e eu disse para ele: “É para quem gosta de mato, André, tem energia muito legal, pé de palmito. Mas também tem estrada de terra, faz lama quando chove, tem de lidar com formigas, espantar cobras. O celular é uma merda, agora deu uma melhoradinha com a internet de fibra óptica. Mas não pretendo voltar a morar em São Paulo, não”.
Como anda o verde da região?
No bairro que a gente mora, esta ganância imobiliária ainda é um pouco mais civilizada. No loteamento, os lugares de mais difícil acesso são áreas de recreio. Quando tudo estiver construído, ainda vai ter estas matas. E conseguimos provar que o local é um ponto de parada migratória da Reserva do Japi para a do Morro Grande, portanto, para construir agora, tem de ter laudo de fauna e flora. Isto faz com que venha para cá gente que gosta do lugar por ser como é. E ele é incrível. Se pensar bem, todas estas áreas verdes juntas, tem mais de um Ibirapuera. Além disso, gosto de fazer vizinhança solidária, que para mim é a forma mais segura de proteger seu entorno.
É lá que você tem seu atelier?
Sim. Lá construí minha oficina, onde faço mandalas e outros objetos com madeira que acho no meio da mata. Faço restauração de móveis também. Estou cada vez curtindo mais. No início, trabalhei muito com cenografia, agora estou voltando. É muito gostoso, inclusive para consorciar. No trabalho de ator, tem sempre muita gente em volta. Tem o personagem para fazer e você tem de trabalhar na relação com o pessoal da gravação. Já no atelier,
é diferente. Eu fico comigo mesmo e, nesse sossego, tem apenas uma peça de
madeira em frente que tenho de lidar. Posso passar oito dias lixando, depois
polindo. Nisso, sua cabeça vai lembrando coisas, você vai se revisitando. É bem legal
para lembrar quem você é. Esta mistura é muito agradável. Na hora de voltar para
a gravação, dá vontade de verdade de ir. Tenho até uma conta no Instagram (@oficinadosalces) para divulgar meu trabalho como artista. Eu não sei se está atualizada
ou não, pois é minha filha quem posta.
Para finalizar, qual mensagem você quer compartilhar com os leitores?
Vou contar uma narrativa. O Bemvindo Sequeira (ator, humorista, autor e diretor de teatro, cinema e televisão) está morando em Portugal. A mulher dele, já vacinada, morreu de Covid no ano passado. Naturalmente, ele ficou abalado. Como faz terapia, foi discutir a questão na sessão. “Porque a vida tem de continuar?”, lamentou. O terapeuta respondeu: “Porque sim”. No fundo, o segredo é parar de perguntar um pouco e tocar a vida em frente. É difícil, mas simples assim.
Por Monica Martinez