Infelizmente, sou obrigado a conviver com dois celulares e suas smarts inconvenientes funções. Convivência difícil, entre amor e ódio, necessidade e desapego, dependência e abstinência. Como diria Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros”. Recebo dezenas de ligações diárias do tu tu tu tu, pois atendo o celular e dá o tradicional sinal de ocupado. As operadoras de telemarketing, agora em gravações, ligam diariamente oferecendo as mesmas coisas todos os dias, ou seja, tudo o que não preciso, e não adianta bloquear os números, pois eles mudam a cada instante. Tem o maldito consignado dos aposentados, em que o vendedor cheio de intimidade liga e oferece uma bomba-relógio como se fosse um pote de Nutella. Sem contar as chamadas a cobrar que atendo e é engano. Uma das operadoras de celular acha que meu número é de um tal Genilson, caloteiro de primeira, e insiste em localizá-lo. Não adianta dizer que o Genilson já era, que não sou eu, blá-blá-blá, eles não acreditam. Até já disse que o Genilson morreu. Não adiantou. Aí alguém te liga pelo WhatsApp. Outra roubada! Cai a ligação, começa a picar a chamada, têm os cortes, entram chiados e alguns ETs falam com você, que fica sem nada entender. Sem contar quando entram chamadas ao mesmo tempo nos meus dois aparelhos e estou guiando. Outra façanha é não ser multado no trânsito de São Paulo com celular a bordo. Waze, WhatsApp e chamadas ativas ao mesmo tempo são uma combinação explosiva no trânsito. Com dois aparelhos, impossível! Parece que as chamadas são conectadas com os marronzinhos da CET, que surgem do nada quando você as recebe, e o bluetooth automaticamente para de funcionar. Quando é preciso falar com alguém, em nove de cada dez ligações, ninguém atende. A geringonça toca até entrar aquela mensagem impessoal para deixar o recado que ninguém vai escutar. Isso vale para família, trabalho, amigos etc., o que deixa algumas mães em pânico, filhos em fuga, casais em constantes DRs e amigos contrariados com a dificuldade em se comunicar. Mães em pânico são um clássico. Qualquer ligação que o filho(a) não atenda, as pobres criaturas surtam. Pensamentos sombrios povoam a fértil imaginação feminina que logo conclui que a desgraça se aproxima. Enquanto isso, o garotão na balada, no boteco ou namorando, ignora a chamada solenemente. Conheço mãe que já foi na balada atrás da filha e pagou o maior mico. Já entre casais o bicho pega. Onde você estava? Por que não atendeu minha ligação? A primeira dedução de quem liga, é que o parceiro(a) que não atendeu o celular estava numa orgia pantagruélica, regada a drogas, sexo e rock’n’roll. Ou enchendo a cara com más companhias. Ou fazendo sei lá o quê, que não era para fazer. Se estiver no trânsito dentro de um túnel e sem sinal, ferrou. Vai ao supermercado? Lá vem a lista no WhatsApp e aquela comprinha gostosa vira a compra do mês. No trabalho, o infernal aparelhinho é o seu chefe. Vinte e quatro horas de chefia no seu bolso, ainda mais nos celulares corporativos que indicam sua geolocalização com certo prazer tecnológico. Um big brother dos bigs. E sempre o chefe te pega na hora errada. No banheiro, num local com música ou perto de um policial onde não dá para falar. Houve época em que as pessoas saiam de férias, e ficavam dias sem falar com ninguém, fosse chefe, família, amigos ou inimigos. Hoje não importa o fuso horário, distância ou condições, você é prisioneiro das ligações. E tem que atender e responder na hora, mesmo se estiver dormindo ou dentro de um vulcão ativo, num terremoto, num show de heavy metal ou numa atração da Disney, sem comunicação com o mundo. Celular, impossível viver sem ele, mas a vida era bem mais leve antes dele.
Por Marcos Sá, consultor de mídia impressa, com especialização em jornais, na Universidade de Stanford, Califórnia, EUA. Atualmente é diretor de Novos Negócios do Grupo RAC de Campinas