O último lugar que pensaria em fazer turismo no Brasil seria no estado do Amapá, pois nunca vi referências turísticas deste estado, somado à distância a percorrer.
Como estávamos em plena pandemia, e minha última experiência de viagem internacional foi bastante estressante, sentei na frente do computador e comecei a navegar procurando destinos no Brasil.
Inicialmente as ofertas de passeios no estado eram restritas à cidade de Macapá, com tours pelo rio Amazonas, Marco zero, e fortaleza de São José.
Após algum tempo de procura visualizei uma empresa que se apresentava como sendo de turismo ecológico de base comunitária, a Ecocamping.
A proposta era de que ficaríamos alojados em casa de ribeirinhos, experienciando a vida local e conhecendo o entorno da selva amazônica.
Fiquei imaginando que dormiria na rede, dentro de uma casa de madeira bem pobrezinha, infestada de mosquitos transmissores de malária, sem luz, e tendo que fazer cocô numa fossa malcheirosa fora da casa.
Decidimos correr o risco. Me embebi do espírito de aventura e lá fomos nós!
A cidade de Macapá oferece poucos atrativos, mas só a visão de rio Amazonas, que mais parece um mar, já vale muito a pena.

Fizemos um passeio de barco pelo rio, visitando a ilha de Santana a partir de um subúrbio da cidade. Noutro dia percorremos os pontos turísticos da cidade.
A culinária é amazônica, baseada em peixes, especialmente o “filhote”, e camarão salgado no bafo. Tacacá e maniçoba não podem faltar, regados aos sucos de cupuaçu e tapereba.
Viajamos de Macapá a Porto Grande onde imediatamente pegamos uma voadeira de alumínio e começamos a subida do rio Araguari até a FLONA (floresta nacional).
Aí começa o espetáculo amazônico!!!

A selva é de uma grandiosidade inexplicável! Os rios são verdadeiras autoestradas, ladeados por uma muralha de vegetação absolutamente exuberante.
Após 4 horas de barco chegamos na casa de dona Glorinha.
Nada do que tinha imaginado correspondeu a realidade.
A casa foi preparada para receber o turista da forma mais confortável possível.
A família ocupa dois quartos, adjacentes a um grande salão que funciona como sala de estar, refeitório e quarto.

De noite as redes são penduradas com cordas e envolvidas com mosquiteiros. As laterais deste salão são abertas, o que é bom porque ventila bem o ambiente, mas a sensação de segurança é absoluta.
O banheiro está no corpo da casa e consiste de privada com descarga, e chuveiro. No momento o banheiro só estava fechado por uma cortina, porque a família ainda não teve o recurso para colocar uma porta, mas está nos seus planos a curto prazo.
Tínhamos um gerador que funcionava por poucas horas de noite, mas que permitia ver a “novela” e ativava o wifi que apesar de não ser muito potente era suficiente para a comunicação com o “mundo externo”.
Isto mesmo, pois a sensação é de que estávamos absolutamente isolados numa grande bolha verde!!
No caminho até a casa de d. Glorinha passamos por casinhas ribeirinhas aqui e acolá, na maioria pertencendo ao mesmo grupo familiar.
Fomos extremamente bem recebidos. A família nos acompanhou em todas as atividades (percorrido pela selva, almoço na casa de d. Loura, banho no rio etc) fornecendo uma quantidade enorme de informações de quem tem absoluto conhecimento e domínio da selva.
As refeições eram deliciosas, bem servidas com peixe e carne de caça.

A curiosidade era mútua, e a troca de conhecimentos (geralmente feita durantes os banhos de rio) favoreceu a ambos os lados.

Vi uma riqueza e solidez interior muito diferente da insegurança e estreiteza cultural a que se submetem os que migram para as cidades grandes a procura de uma vida “melhor”.
Entendo a falta de opções de sobrevivência, limitada basicamente a exploração do açaí, na época da colheita, uma vez ao ano.
Mas, as mulheres locais montaram uma Associação para fabricação de sabonetes medicinais a base de componentes da floresta.
O produto é primoroso, e o projeto, com a ajuda de um instituto governamental está se encaminhado de forma maravilhosa.
Esta atividade, associada ao veio turístico de base comunitária, pode favorecer o sustento de forma mais sólida, refreando a procura de trabalho em garimpos e desmatamentos ilegais ou mesmo a fuga para os grandes centros.
Com muito pesar deixamos aquela comunidade para iniciarmos a segunda etapa da nossa aventura que foi a estadia no Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque.
Mais algumas horas de estrada de terra chegamos ao vilarejo de Água Branca do Amapari, onde em 2 barcos subimos o rio Amapari para o pernoite numa casa ribeirinha. Esta tinha luz e internet ao tempo todo pois era relativamente próxima do vilarejo.
Lá também as redes foram estendidas no terraço para o pernoite.

Logo após a nossa chegada fizemos um hiking bem puxado para o topo de uma montanha que foi local de extração de manganês algum tempo atrás. Hoje, o sitio da extração se transformou num lindo lago, azulado e absolutamente transparente onde pudemos nadar à vontade nos recuperando do grande esforço feito.

Seguimos o dia seguinte para a sede do Parque Nacional.
É o maior parque do Brasil e seus limites envolvem também os países vizinhos Guiana Francesa e Suriname.
Os dois barcos se fizeram necessários, uma vez que um deles levava a cozinheira e toda a estrutura para o acampamento na sede, e o outro nos levava (um grupo de 6 turistas e uma guia local).
Foram seis horas de barco até a sede, num rio bastante perigoso, com muitas pedras e corredeiras ao longo do caminho, que somente um barqueiro muito treinado consegue navegar.
Após a primeira hora de navegação já não se via nenhuma casinha ribeirinha, significando que adentramos ao coração da selva amazônica.
Chegamos ao entardecer na sede do parque, que consiste de um grande barracão, com espaço para pendurar as redes, um espaço para uma cozinha rustica e mesas para as refeições.

Ao redor existem mais dois barracões menores, para possibilitar acomodação de um grupo maior, e mais adiante duas fossas. O banho logicamente era no rio.
Na época da inauguração do parque a sede chegou a ter geradores para captação de agua e a possibilidade de luz algumas horas da noite. Mas o próprio isolamento do lugar com a dificuldade de controle impossibilitou a manutenção desta infraestrutura mínima.
A água era captada no rio com baldes e a falta de luz proporcionou noites deliciosas a luz de vela e breu branco, contando “causos” ao redor da mesa.
Muito interessante, que apesar de estarmos tão isolados, não senti medo algum, pois estávamos acompanhados de pessoal local, que estavam completamente à vontade no seu habitat natural.
Fizemos inclusive um passeio noturno, na esperança de avistar alguns animais, que durante o dia acabam se isolando, ao sentir a presença humana.

Após duas noites e dois dias, com muitas incursões na selva e muito banho de rio, começamos a nossa longa volta para casa.
Aos meus 65 anos de idade, foi uma viagem de um desafio físico muito grande, um imenso espírito esportivo para enfrentar a falta de comodidade, o medo da malária, e a insegurança de que no caso de alguma intercorrência, o socorro seria bastante complicado.
Mas venci.
Minha botinha de caminhada não vai se aposentar tão cedo, e fica o gostinho de que muitas outras boas aventuras ainda são possíveis!!

Debora Patlajan Marcolin, médica, 65 anos, muito curiosa com relação a diversidade cultural do nosso planeta. Viajo desde que me conheço por gente e tudo me atrai. Desde a minha vizinhança pobre de Carapicuiba até as cerimonias fúnebres de Tana Toraja na Indonésia, passando por paraísos naturais como o pantanal mato-grossense e deserto do Jalapão. Já conheci por volta de 75 países e não paro de projetar novos destinos. Entendo que para se viajar é preciso estar de peito aberto e abandonar todo tipo de preconcepção, que com certeza, a viagem vai te provocar profundas mudanças internas e gosto pela vida. Autora do blog A Minha Viagem.