Artemisia Gentileschi nasceu em Roma, no dia 8 de julho de 1593. Filha do pintor Orazio Gentileschi, amigo pessoal de Caravaggio, e Prudentia Montone (que morreu quando Artemisia tinha 12 anos). Era a filha mais velha de quatro irmãos e, desde criança, pintava no ateliê do pai, adotando também o estilo caravaggesco. Aos 19 anos, foi estuprada por Agostino Tassi, um também pintor amigo de seu pai e contratado por este para ser tutor da jovem artista. Ao falhar em manter sua promessa de casamento, Agostino foi denunciado por estupro pelo pai da pintora e o caso foi levado à corte italiana. Num julgamento que se arrastou durante sete meses, Artemisia foi humilhada, enquanto o agressor, apesar de ter sido condenado ao exílio por cinco anos, nunca cumpriu a pena. Como principal protagonista deste provável primeiro caso de estupro que se tornou público, ao ser acusada de promiscuidade, Artemisia acabou adquirindo uma reputação dúbia. Em 1612, um mês depois do final do julgamento, através de um casamento arranjado pelo pai com um desconhecido pintor florentino, Artemisia mudou-se para Florença. Foi muito bem recebida na corte dos Médici, recebendo várias encomendas de pinturas. Fez amizade com Galileo Galilei e Michelangelo Buonarroti (sobrinho do “divino” Michelangelo). A artista conseguiu um feito inédito até então: foi a primeira mulher a ser admitida na Accademia delle Arti del Disegno de Florença. Acreditava-se que Artemisia teria morrido entre 1652 e 1653, mas evidências recentes mostram que ela ainda aceitava encomendas em 1654. Especula-se que ela tenha morrido na devastadora praga que varreu Nápoles em 1656 e, que por consequência, aniquilou toda uma geração de grandes artistas.
VAMOS OBSERVAR
Judite Decapitando Holofernes, 1612
Tinta óleo sobre tela
158,8 x 125,5 cm
A injustiça sempre foi muito comum quando se tratava de artistas mulheres e isso foi o que aconteceu com a pintora. Pelas gerações que se seguiram, ela passou a ser considerada uma mera curiosidade, uma aberração. Nenhum cavalheiro amante das artes ousaria comprar obras de uma mulher em vez de seus contemporâneos, gigantes como Caravaggio, El Greco e Rubens. Quando seus críticos eram generosos, mencionavam que era impossível imaginar que uma mulher havia pintado aquilo. Quando não, tratavam-na como uma megera sociopata, por colocar mulheres, inclusive ela mesma, em papéis tão violentos em obras de arte. Ela só seria resgatada da obscuridade na década de 1970, pelas feministas. A princípio, pelo interesse por sua vida – uma vítima de estupro, nunca justiçada, que enfrentou todo tipo de preconceito para prosperar num ofício tido como exclusivamente masculino. Mas logo também por sua arte, que, ficou evidente, tinha uma assinatura própria, um talento imenso e um ponto de vista que nenhum pintor masculino poderia expor.
Judite é um tema popular entre pintores. Porém, em sua visceral obra-prima, muito mais violenta que outras versões, Artemisia pôs, literal e figurativamente, a si própria na arte. O sangue que Artemisia queria ver correr na vida era de Agostinho Tassi, que ela transplantou para a figura de Holofernes. Em 1612, foi condenado não só por isso como por planejar matar a esposa, cometer incesto com sua cunhada e tentar roubar as obras do pai de Artemisia. Segundo o Livro de Judite, Holofernes, o general, estava lá por uma ordem do arrogante Nabucodonosor, que queria forçar todos os povos da região a se aliarem a ele contra o rei dos medos (império asiático). Sua arrogância, luxúria e fraqueza por vinho contrastam com as virtudes da heroína Judite, que era casta – ela nunca se casaria novamente. Judite era uma viúva atraente da vila de Betúlia, que estava no caminho da invasão assíria a Israel. Ela foi até o campo inimigo e flertou com o general Holofernes, ganhando sua confiança. Numa noite, quando estava bêbado, entrou em sua tenda e, com a ajuda de uma serva, o decapitou, levando a cabeça para a cidade, expondo-a contra a covardia dos homens, que queriam se render.
Artemisia representou Judite com seu próprio rosto, realizando uma fantasia de justiça contra seu grande inimigo: o homem, seu estuprador. A cena foi pintada múltiplas vezes, mas nenhuma delas expressa a brutalidade da versão de Artemisia. Nela, as mulheres mostram o esforço para degolar o inimigo, restringindo-o, com ele lutando de volta.
Apesar do esquecimento histórico generalizado relacionado à maioria das artistas mulheres, que ocorreu até século 20, hoje as obras de Artemisia se encontram nas paredes dos mais importantes museus do mundo, ao lado de artistas como Caravaggio e Rubens. Pela primeira vez no Reino Unido uma grande exposição monográfica da obra da artista será realizada na National Gallery. A exposição, que abre em abril de 2020, reunirá as obras mais importantes da artista e finalmente fará juz à sua história e ao seu talento.
Por Milenna Saraiva, artista plástica e galerista, formada pelo Santa Monica College, em Los Angeles.