“A ideia é mostrar que a vida é linda”, escreveu para nossa redação

Neste exato momento, ela curte merecidas férias na Ilha de Rhodes, na Grécia. “Mas está uma atmosfera bem estranha. Os hotéis quase todos estão fechados, tem pouquíssimos abertos. Restaurantes, também. Fomos dar uma volta e tivemos praticamente a cidade toda para gente. As ruelas, que estariam normalmente lotadas de gente, estavam vazias. Nas praias, a mesma coisa”, descreve. Cenário nada típico para a alta estação europeia, que começou no início do mês. “Penso que as pessoas ainda estão com medo, porque eu nunca vi cidade na Europa vazia como está agora nessa época do ano, que é alta temporada”, comenta. “Não está aquele típico clima de férias, mas está uma delícia e eu estou super curtindo, porque tenho a praia toda para mim praticamente. E quanto menos pessoas, menos risco de infecção”, completa.

 

Este é o diário de férias de Marta Baliana (foto), brasileira de 44 anos e que mora na Bélgica. Ela saiu de Cotia com uma mochila nas costas, a ânsia de ganhar o mundo e escolheu a capital belga para tal, há duas décadas. “Bruxelas é a segunda capital europeia mais verde, bem arborizada e cheia de parques, e é o que eu mais curto na cidade. Agora, no país, o que eu mais curto é o fato de ter igualdade social. Claro que há pobres e ricos, como em todo lugar do mundo. Mas a política econômica e social do país não permite nem que seja pobre miserável ou muito rico. Porque, quanto mais dinheiro você tem, mais imposto você paga e isso ajuda a equilibrar as diferenças sociais. Graças a esse sistema social-democrático que aceita a economia do mercado, ao mesmo tempo em que tem como base a declaração dos direitos humanos e a distribuição de renda, foi possível eu chegar aqui com uma mochila nas costas, sem dinheiro e me estabelecer no país”, relembra.

Hoje, 20 anos depois, casada com o ítalo-holandês Markus (foto) e mãe da vira-latinha Petra, Martinha – como é conhecida por seus amigos no Brasil – tem nacionalidade belga e é diplomata. Trabalha na Sala de Crise da União Europeia junto com a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte. “É um serviço híbrido, diplomático e militar”, explica. Por conta disso, seus últimos meses foram bem intensos e, agora, pode gozar de um breve período de descanso. “Já está mais tranquilo. A equipe continua fazendo relatórios três vezes por dia, da evolução da doença e das regras que são aplicadas em cada país. Mas no auge da pandemia, eram seis por dia. Estamos bem a par do que está acontecendo em âmbito europeu, recebemos informações dos estados membros da União Europeia, reagrupamos e enviamos para o Ministério de Relações Exteriores, embaixadas e serviços diplomáticos de cada país”, conta.

Vira-latinha Petra

Ela também foi responsável pelo repatriamento de cerca de 60 mil europeus. “E foi aí que tivemos muito trabalho, porque as fronteiras internas também estavam fechadas. Veja: a Lufthansa havia disponibilizado 60 lugares de um voo de Bangkok para Frankfurt. Então, a pessoa conseguiu ser repatriada para Europa, mas quando chegou aqui, ficou bloqueada na Alemanha. Então, tivemos que fazer toda essa coordenação e foi um trabalho bem puxado. Organizamos voos em aviões militares para poder trazer o pessoal para casa”, relembra.

Apesar de corrido, havia uma vantagem: isso tudo foi feito remotamente de casa. Ela trabalha em home office, desde final de fevereiro e deve continuar por mais um tempo. “Pelo menos, tomo meu café de manhã de pijama, leio meus e-mails de pijama… então,  não vamos reclamar, né?”, brinca. “Como trabalhamos em uma sala grande com muita gente e a prioridade era respeitar a distância social, logo que tudo começou fomos os primeiros a parar de ir para o escritório e a começar a fazer o trabalho de casa”, justifica.

Passeio no parque, em meio à pandemia

Cada país europeu determinou suas próprias regras para conter a pandemia. Na Bélgica, onde a brasileira mora, o confinamento foi total. “Teve restrição de movimento, não podíamos usar o carro e só podíamos sair para comprar comida ou remédio, ir para o médico ou hospital. Sair para fazer exercícios sempre foi permitido, mas não de carro para um parque, por exemplo”, conta. A população respeitou, mesmo sem controle severo: “a polícia parava às vezes, mas era mais para informar do que para multar. Não foi preciso de força para poder fazer a quarentena ser respeitada”.

A grande questão foram as filas, principalmente no começo. “O pessoal começou a querer fazer estoque e tinha muita fila dos mercados. Como não teve penúria de nada, as pessoas se acalmaram um pouco. Continua tendo fila ainda, mas hoje mais pela distância social que tem que ser respeitada e o número de pessoas dentro dos comércios”, esclarece.

Marcas no chão para as pessoas respeitarem a distância social de 1,5 m
Mensagem: “se faltar champagne, é só ligar”

O governo também adotou medidas para ajudar pessoas físicas e jurídicas. “As empresas, por exemplo, tiveram abatimento nos impostos e ajuda para poder pagar os funcionários. Somos um país pequeno e muito rico, então conseguimos fazer com que a economia não quebrasse. Só as empresas que já estavam ruins das pernas que não conseguiram ir para frente, mas fora isso não tivemos problemas com quebradeira. Claro que a economia parou de virar, mas perder para quebrar não aconteceu. Algumas pessoas tiveram corte de salário, mas por outro lado quem tinha empréstimo hipotecário para pagar a casa própria teve a dívida congelada e, com isso, quem usava o imóvel para locação conseguiu também suspender a cobrança de aluguel do inquilino. A ação foi muito bem coordenada. Isso sem contar que os desempregados têm acesso a uma renda universal, que varia conforme a sua condição, se tem família, criança pequena ou gente de idade. Então, não existe na Bélgica pessoa que não tenha um salário”, comenta.

Grand Place de Bruxelas: p ponto turístico mais visitado da Bélgica completamente vazio
Aviso de reabertura dos museus

A Bélgica iniciou seu desconfinamento no dia 4 de maio, quando o instituto de saúde Sciensano confirmou que a propagação do vírus no país estava diminuindo com uma taxa de reprodução de 0,6. Com isso, uma pessoa infectada infecta menos de uma pessoa, diferente da taxa de 2 a 3 no início da epidemia. “Nesta primeira fase, já podíamos pegar o carro e ir com um amigo para o parque. Mas não podia ainda usar os bancos, ficar parado ou estender uma toalha na grama e sentar para papear isso”, relembra.  A principal mudança desta fase ocorreu no setor econômico, com a autorização para retomar todas as atividades denominadas “B2B”, ou seja, entre empresas, mas o trabalho remoto continuou sendo a norma. Encontros e reuniões caseiras entre amigos permaneciam proibidas.

Durante a fase 1B, que começou no dia 11 de maio, todas as lojas reabriram sob condições rigorosas. A segunda fase iniciou no dia 18 de maio com a reabertura gradual das escolas. E a terceira fase em 8 de junho, com a reabertura dos restaurantes.

Diversão agora só ao ar livre
Restaurantes ainda vazios

“Na segunda fase do desconfinamento foi quando começou a poder fazer grupos e visitar amigos. E tudo que é comércio de street food, por exemplo, vender um sorvete em ambiente aberto, foi liberado também. Já na última fase, a dos bares e restaurantes, é que o desbundou de vez (risos). Já estava calor e para um país onde se faz nove meses de frio, não teve jeito: depois de tantos meses fechados, o povo foi para a rua mesmo, mesmo tendo consciência do perigo e sabendo que o vírus ainda está circulando”, comenta. “Já se fala em uma segunda onda que pode chegar por conta disso, mas por enquanto está estabilizado. Continua estável, não diminuiu o número de casos, mas o número de mortes sim. Ainda não sabe como é que é coisa vai evoluir, mas se preciso for, vai confinar de novo”, faz questão de ressaltar.

Em toda Bruxelas, tem mensagens de agradecimento às pessoas que trabalharam durante a crise
Novo meio de transporte: patinete elétrico

Apesar da gravidade de toda situação, Martinha avalia como positivo o impacto da pandemia. “Continuo trabalhando de casa e muita gente vai continuar trabalhando assim. Como forma de obrigar empresas a manter essa forma de trabalho – porque mais do que nunca foi provado que o país continuou a funcionar -, nas avenidas foi eliminada uma pista e feita uma ciclável, que é para estimular a não pegar o carro. Essa nova forma de trabalho está impactando em uma série de outras coisas também. O meio ambiente é uma delas. A poluição na Bélgica nunca foi muito alta, mas há anos nunca esteve tão baixa por conta da menor circulação de veículos. Foi medido também o nível de ruídos e, nos últimos 20 anos, foi o período mais silencioso”, comenta. Ela aproveita para nos contar que, em um dia desses, enquanto conversava com um amigo do Brasil, ela viu pela janela da cozinha uma raposa passeando tranquilamente pela rua.

Outro impacto, para ela, foi na saúde da população. “Como não podia ir para bar, fazer festa em casa ou visitar outra pessoa, a saída era ir para parques se exercitar. Então, muitos começaram a adquirir hábitos mais saudáveis, que tiveram impacto até na taxa de obesidade”, diz.

Mensagem no parque

Ela ainda não sabe qual conclusão tirar da situação pelo qual o mundo está passando, mas tem certeza que não veio gratuitamente. “Ainda não sabemos, não tivemos tempo suficiente para olhar para trás e ver as coisas com mais clareza. Mas acho que nos mostrou que um fato isolado pode afetar a todos. Somos peças soltas de um quebra-cabeça em que todo mundo faz parte. Se faltar uma peça, fica incompleto e não tem harmonia.  A pandemia mostrou que precisamos estar juntos para poder fazer a coisa funcionar e eu acho que o maior legado foi a corrente de solidariedade. Foi um chacoalhão e fez acordar muita gente. Acho isso muito positivo. No pós-pandemia, vejo um mundo mais proativo, de união faz a força mesmo! Penso que estamos no bom caminho para tornar o mundo melhor”, finaliza.

 

Por Juliana Martins Machado

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