Milenna Saraiva escreve sobre a arte de Remedios

Falecida precocemente aos 55 anos, apesar de praticamente apagada da história oficial do surrealismo, María de los Remedios Varo deixou um legado incrível. Nossa colunista Milenna Saraiva escreve sobre o trabalho dela: "Remedios gostava de pintar portas, engrenagens, mecanismos, chaves, relógios e outros símbolos comuns ao universo dos sonhos. Suas pinturas inspiraram o clipe Bedtime Story (1995), de Madonna, em que os elementos clássicos de Varo - como espelhos, lua e os olhos da coruja - são ornamentos para as personagens que a cantora interpreta".

Diante da perda da filha, a catalã Ignacia Uranga se viu inconsolável.  Aos seus olhos, somente uma gravidez poderia amenizar a dor de uma mãe em luto. Foi então que, em 1908, nasceu María de los Remedios Varo. A terceira e mais nova de três filhos foi assim batizada para remediar a tristeza de toda a família. No fim das contas, o nome do meio acabou se tornando a maneira escolhida por si própria para se apresentar ao mundo e às artes.

O caráter aventureiro da artista foi incentivado pelas frequentes mudanças devido ao trabalho do pai. Ainda pequena, foi morar no Marrocos; depois, em Madrid. Aos 15 anos, manifestava imensa coragem, dando o primeiro e fundamental passo em um cenário predominantemente marcado por homens no país: candidatou-se a uma vaga na mais próspera e conceituada academia de artes espanhola, a Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, que tinha em seu currículo de formação pintores como Pablo Picasso. Aceita, tornou-se uma das primeiras mulheres da história a estudarem no instituto.

Mais tarde, em 1935, já inserida no movimento surrealista de André Breton, dividiu mesas de discussões com o conterrâneo e colega catalão Salvador Dalí, bem como outros artistas de renome da época. Por que, então, ao estudarmos o movimento, nunca ouvimos falar de Remedios ou qualquer outra artista do sexo feminino?

Em uma vida conduzida por problemas cardiovasculares, também teve sua trajetória marcada por fugas. Primeiro, da Guerra Civil Espanhola e de seu ditador Francisco Franco. Depois, quando já estabelecida em Paris, fugitiva da ofensiva nazista de Hitler.  Assim como outros artistas anarquistas da época, encontrou no México refúgio para concretizar os mundos lúdicos e fantasiosos que pintava. “Vim ao México em busca de uma paz que não tinha encontrado nem na Espanha (a da Revolução), nem na Europa (a do terrível conflito). Para mim, era impossível pintar em meio a tanta preocupação (…) Você pode ir daqui para lá, mas enquanto você não estiver bem, nada ao seu redor estará”, disse a artista.

VAMOS OBSERVAR
Mulher Saindo do Psicanalista
1960
Óleo sobre tela
71 x 41 cm
Museu de Arte Moderna, Cidade do México 

A Mulher Saindo do Psicanalista leva um cestinho com uma chave, um frasco e um relógio, que simbolizam talvez o tempo e o medo de se atrasar. Sua máscara é parte integrante do seu manto verde, com o qual pode se esconder, mostrando apenas os olhos. Na outra mão, ela lança a cabeça fantasma de seu pai num poço. Atrás dela, uma plaquinha diz: Doctor Von FJA, sigla para Freud, Jung e Adler, os pais da psicanálise.

Nas duas primeiras décadas do século XX, os estudos psicanalíticos de Freud e as incertezas políticas criaram um clima favorável para o desenvolvimento de uma arte que criticava a cultura europeia e a frágil condição humana diante de um mundo cada vez mais complexo. Surgem movimentos estéticos que interferem de maneira fantasiosa na realidade. O surrealismo foi por excelência a corrente artística moderna da representação do irracional e do subconsciente. Suas origens devem ser buscadas no dadaísmo e na pintura metafísica de Giorgio De Chirico.

Este movimento artístico surge todas as vezes que a imaginação se manifesta livremente, sem o freio do espírito crítico; o que vale é o impulso psíquico. Os surrealistas deixam o mundo real para penetrarem no irreal, pois a emoção mais profunda do ser tem todas as possibilidades de se expressar apenas com a aproximação do fantástico, no ponto onde a razão humana perde o controle. A livre associação e a análise dos sonhos, ambos métodos da psicanálise freudiana, transformaram-se nos procedimentos básicos do surrealismo, embora aplicados a seu modo. Por meio do automatismo, ou seja, qualquer forma de expressão em que a mente não exerce nenhum tipo de controle, os surrealistas tentavam plasmar, seja por meio de formas abstratas ou figurativas simbólicas, as imagens da realidade mais profunda do ser humano: o subconsciente.

O Surrealismo foi o primeiro movimento na história da arte a incitar a participação de mulheres. No entanto, apesar do fundamental passo, o que propunha não era exatamente cumprido: estas eram dificilmente convidadas a participar de importantes decisões do manifesto, além de serem frequentemente retratadas como objetos catalisadores da criatividade masculina. Essas artistas, portanto, passaram a trilhar seus caminhos sozinhas. Remedios foi uma delas.


Por Milenna Saraiva, artista plástica e galerista, formada pelo Santa Monica College, em Los Angeles.

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