Cineasta Kity Féo revela bastidores de produções cinematográficas

No cinema, destacam-se o elenco e a direção. Mas estes são a ponta do iceberg. Há muitas engrenagens rolando para um filme sair do papel e chegar às telinhas e telonas. Uma das funções essenciais é a de assistente de direção. E uma das profissionais mais importantes do país é uma paulistana de 53 anos, Kity Féo. Kity é o apelido da infância. Féo é o sobrenome da família de origem italiana, língua que adulta aprendeu a falar na Perúgia, onde passou a compreender melhor o jeito da mãe de falar com as mãos. Inspirada pelo pai, um apaixonado pela cultura, ela se formou em cinema na FAAP em 1994, quando o Brasil vivia a “Retomada”. Hoje a base de dados IMDb cita 37 filmes no seu nome, número que segue crescendo (ela estava de malas prontas para gravar em Belém, no Pará). Mas se falar em festas e natais, suas lembranças estão fincadas na Granja Viana, onde certa vez se vestiu de Papai Noel para um sobrinho pequeno. Casada há seis anos com a atriz Ana Kutner, filha dos atores Paulo José e Dina Sfat, ela tem um lado forte espiritual,
praticando diariamente o Kabash. E lembra que, acima de tudo, é preciso sonhar.

Mãe Rosina De Stefano

Para começar: quem nasceu em 17 de janeiro de 1969 em São Paulo?
A Cristiane De Stefano Féo. Kity vem de Cristiane. Eu não conseguia pronunciar meu nome e soava Kityane. Acabou pegando o diminutivo. Virei Kity. O Féo é de origem italiana. De Stefano Féo. Minha mãe era filha de italianos, meu pai neto. Meus avós maternos eram de Salerno, da região da Campania, e a família de meu pai veio da Toscana. Sou essa pessoa que não senta. Macaco no horóscopo oriental e capricórnio no ocidental. O capricorniano melhora com o tempo. Existe uma coisa nesse signo que pouca gente percebe: ele é representado por uma cabra com rabo de peixe. Portanto, um ser que vive na terra, troca muito na terra, é social, sobe a montanha, muito devagar, não sobe direto. Adquire o conhecimento do mais alto e aí volta e vai para o fundo do mar, da água. É no signo de capricórnio que nasce o romance. Meus amigos capricornianos são os que têm mais dor, que mais sofrem, porque são muito introspectivos. Fica-se muito solitário. Mas é uma opção do silêncio, não uma sina.

Nonna Dalia e Kity Féo

Sua família a apoiou na escolha da carreira?
Meu avô, pai do meu pai, era dentista e tocava piano, violino e clarinete numa banda. Mas acho que vem do meu pai mesmo. Eles eram o máximo, incríveis. Ambos já faleceram. Meu pai era engenheiro, fez Poli [a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo]. Já minha
mãe era formada em administração pelo Mackenzie. Tive pais muito maneiros. Muito participativos, presentes. Meu pai me inspirou muito para o cinema, ele me levava sempre para o teatro, cinema, espetáculos, shows. Eu me lembro que, quando a gente viajava para visitar parentes em Barretos, íamos de trem, eu com revistinhas em quadrinho e câmera
fotográfica. Câmera e quadrinhos fizeram me transformar em minha narrativa. Já minha mãe era uma intelectual, socialista. Da minha mãe, herdei a rigidez. Do mesmo jeito que tenho um lado doce, tenho meu lado forte. Eu acho que me identifico com ela nesse lugar da independência, força. Tenho três irmãos de pai e dois de mãe. Nenhum seguiu a área do cinema como eu.

Como foi estudar cinema na FAAP?
Nos anos 1990, só tinha cinema lá e na USP. Dos 10 aos 18, fui atleta. Era jogadora de
basquete e treinava no Santa Maria, em São Caetano do Sul. Basquete e cinema têm a mesma andada. No basquete, eu era capitã de equipe, estava sempre viajando. Mas quando estava para entrar na faculdade, fiquei em dúvida, pois sempre adorei fotografia. Prestei jornalismo e cinema, entrei na Metodista que na época era ótima, mas eu queria ficar num outro universo. Eu queria radicalidade. Aí fui fazer cinema e me apaixonei perdidamente. Naquele tempo, não tinha muita produção, teve a derrubada da Embrafilme. Começou a reaquecer nos anos 2000. Então, fiz bastante publicidade e também passei muito tempo fora. Morei na Itália [estudou italiano na Università Per Stranieri em Perúgia], e na Inglaterra [na Bell School, em Cambridge]. Fiz um pouco de teatro como assistente de direção. Aí já entrei numa tomada grande de trabalho. Longas mesmo foram nos anos 2000, 2001. Nos anos 1990, fiz os filmes Sábado (1995), Boleiros [Era uma vez o futebol] (1998) e Príncipe, de Ugo Giorgetti, em São Paulo. Em Boleiros já era primeiro assistente de direção.

O que faz o primeiro assistente de direção?
Ninguém entende muito o que este profissional faz. E para quem não conhece, é uma função invisível. O cinema tem três etapas: roteiro, filmagem e montagem. As três têm
importância grande. Eu atuo na filmagem. E o assistente de direção é o equivalente a
um chefe de departamento. Trabalha para o filme, sendo o braço direito da direção. Então, todas informações vão para ele, que mexe para que as coisas acontecem. Faz o filme sair do papel e ir para a tela. Você faz um plano para que o filme saia do roteiro e chegue à montagem. Traça sempre o caminho mais reto, mas ao longo dele tem montanhas, relevos, muitas coisas. Então, tem de fazer com que todos departamentos andem juntos para chegar lá.

Você tem 37 filmes citados como primeira assistente no IMDb, do mais recente, Serial Kelly (2021), de René Guerra, a Sábado (1995), de Hugo Giorgetti. Deve ter orgulho de ter uma carreira tão bem construída.
O caminho se faz caminhando. Mas fico muito orgulhosa de chegar aqui dignamente. E saber que ainda tem muito o que fazer. O importante é que está contando história, contribuindo. Krenak [o líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque, Ailton Krenak] fala, no seu livro, que são poucas coisas que te colocam num espaço e dimensão diferentes, e uma delas é dançar e a outra, contar histórias. Entra numa outra dimensão. Contar história está em fazer um caminho honesto, com paixão. Movida pela base que é o amor. Fora toda obsessão capricorniana, sol e lua.

Ao lado de Fernanda Montenegro

Deve ser uma grande experiência trabalhar com pessoas criativas como Andrucha Waddington, Eliane Café, Fernando Meirelles, Matheus Nachtergaele e Selton Mello, entre outros.
É uma troca incrível! São figuras muito interessantes. Se tiver desenvolvida a parte estratégica e técnica, você consegue levar o filme inteiro. O diferencial é o lado humano. E tem alguns assistentes que trafegam na parte criativa, que é a que me interessa. Na verdade, somos todos artistas, é uma troca de igual para igual. Minha experiência me deixa hoje num lugar que posso escolher os meus trabalhos. De uma forma bonita, prefiro o que é ligado à arte.

Kity Féo em cena com Selton Mello

Aliás, o Jeferson De e o Selton Mello acabaram de ser convidados para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, organizadora do Oscar. Está aumentando a representação do cinema brasileiro lá fora?
Tem bastante gente. No ano passado, foram eleitas várias mulheres. Eu diria que deve ter uns 35, de todas as áreas. Rodrigo Santoro, Fernanda Montenegro… São convidados e ficam, pois é uma somatória, não ficam por um determinado tempo.

Com que cineasta que não trabalhou ainda que gostaria de trabalhar?
A Lucrecia Martel, argentina, seria maravilhoso! Ela é uma gênia, a cinematografia dela é deslumbrante. Se me pergunta um filme dela, vou falar todos. É uma mulher bem especial. No geral, eu gosto de trabalhar com artista que tem o quê dizer. Procuro trabalhar com cinema autoral, onde o diretor é o dono da ideia. Do que ele pretende gritar. Acho muito legal quando pega a ideia e mostra, muito maneiro.

Você é fluente em italiano, que estudou na Università Per Stranieri em Perugia, Itália. E em inglês, na Bell School em Cambridge, Inglaterra. O que representa se comunicar em outros idiomas para você?
Muita gente do exterior vem filmar aqui, então com o inglês, espanhol e italiano consegue se comunicar. Italiano menos, porque ninguém fala fora da Itália. Mas uso para adquirir cultura. Fiz questão de aprender italiano. Minha avó falava italiano em casa e eu entendi muito da minha família quando morei lá. Minha mãe “italiana” que falava com a mãozinha.
O artista precisa conhecer a si mesmo. Não que consiga sempre.

Em cena

Foi em O filme da minha vida, de Selton Mello, lançado em 2017, que você encontrou a Bruna Linzmeyer, com quem namorou por um ano?
Eu a conheci No Grande Circo Místico, dirigido por Cacá Diegues, e nos reencontramos
em O filme da minha vida. Qualquer namoro faz você se conhecer melhor. Ela é incrível, os atores são muito mágicos.

Ana Kutner e Kity Féo

Hoje você se relaciona com a atriz Ana Kutner, filha dos atores Paulo José e Dina Staf.
Sou casada com ela há seis anos. Ela tem um filho, o João [da Cunha Eça], com 18 anos.
Conheço-a desde a adolescência, sou amiga da irmã dela, a Bel [Kutner, também atriz].
Eu conto muito esta história: primeiro, o Paulo José era um mito, depois virou meu tio, depois meu ator, depois meu sogro. É divertido. Ana é filhote de Paulo José, cria o dia inteiro.

Paulo José e Kity Féo

Foi uma grande perda a de Paulo José [recentemente falecido aos 84 anos, ele havia sido diagnosticado com a doença de Parkinson em 1992].
Sim, ele faleceu em 11 de agosto do ano passado [2021]. Ele sempre foi criativo e maneiro, não parava de criar um único segundo. Foi muito bem cuidado e morreu de pneumonia.

A Ana tem ascendência judaíca pelo lado materno. O que representa a espiritualidade para você?
Eu lido muito bem. Tenho um mestre de uma filosofia Kabash desde 1995. Portanto, já há 27 anos. Eu medito todos os dias, pela manhã ou à noite. Me ajuda para tudo, a viver melhor, a ficar equilibrada, a poder ouvir mais do que falar, a ter contato com a natureza. Eu acredito que tudo é movimento e que, neste lugar que estamos, somos só um instrumento. Então, eu me cedo para contar histórias. Eu acredito que seguimos transformando. Acredito emmuita coisa,  mas não sei nenhuma verdade.

Nos bastidores de “Serra Pelada”, oferecendo água à atriz com Shopie Charlotte

Você se considera uma ativista pelo movimento feminista?
Sim, sou absolutamente uma ativista ecológica e do feminismo, com muito respeito. Posso não ter toda retórica que outros tem, mas…

Tem vontade de dirigir um filme?
Tenho muitas vontades. Mas da mesma forma que tenho certeza de que, quando estou namorando uma pessoa não se pode estar com outra, sei que minha profissão [primeira assistente de direção] não é uma escada. É uma função bastante importante. Num episódio do Podcast Papo de Setting, disponível no Spotify, falamos bastante nisso. Mas se eu escrevesse o roteiro, eu toparia filmar. Tenho muito assuntos, história é o que não falta.

Qual sua relação com a Granja Viana?
A Granja Viana tem uma importância enorme para mim. Meu tio Vicenzo, irmão da minha mãe, comprou um terreno na Granja e fez uma casa bem grande. Com lugar de fazer pizza embaixo, todas as festas e Natais eram passados lá. Eu me lembro de uma vez me vestir de Papel Noel para meu sobrinho. Tive tanto medo de ser desmascarada por ele que ele acabou nem me vendo (risos). Nasci numa família italiana que cozinha bem e vive à mesa. Era muito gostoso. Eram muitos parceiros todos. A Granja é parte da minha vida mesmo.

Qual reflexão você gostaria de deixar para os leitores?
Eu falaria sobre o sonho. Para as pessoas acreditarem no que querem na vida. Para não desistir. Se tem uma história, faz ela ser realizada de alguma forma. Meu mestre fala isto. Precisamos sonhar, senão a gente morre. Quando meu pai se aposentou, meu mestre falou: só não deixa ele parar de sonhar. E meu pai sonhava como um maluco. Faleceu com 87 anos.

Por Monica Martinez

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