Estudar, trabalhar, comprar, fazer amigos e até mesmo namorar. Estas são apenas algumas das inúmeras possibilidades das tecnologias digitais atualmente. Mas qual o limite entre o uso moderado e aquele prejudicial à saúde? Aqui entramos na seara do psicólogo Cristiano Nabuco. Ele é criador de uma unidade pioneira no país para o atendimento de pacientes dependentes em tecnologia, desenvolvendo modelos de intervenção em psicoterapia. E isso bem antes da Organização Mundial da Saúde (OMS) classificar Internet Disease Disorder como doença da área da saúde mental. Além disso, foi consultor técnico do Governo Federal para o Programa Reconecte e, junto a ONU, Consultor Técnico do Escritório do Alto Comissariado dos Direitos Humanos para o Projeto Digitalização da Educação. Era um fim de tarde de início de outono, quando Nabuco recebeu a Circuito para um bate-papo sobre saúde mental e tecnologia. Encontrou tempo em sua atribulada agenda para sentar com nossa equipe no sofá de sua aprazível casa tipicamente granjeira, enquanto a gatinha Manu pedia colo e atenção, e revelar suas inquietações. Acaba de completar 60 anos, sendo 38 de profissão e mais de 20 livros publicados em vários países.  Queria ser piloto de avião, mas abortou a ideia e se formou em Psicologia, tornando-se um dos maiores especialistas em dependência tecnológica do Brasil. Tem Pós-Doutoramento pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, onde coordena o Grupo de Dependências Tecnológicas do PRO-AMITI do Instituto de Psiquiatria – HC/FMUSP. Está no ar na novela global Travessia, interpretando a ele mesmo e compartilhando conhecimento a respeito dos riscos do consumo excessivo de telas digitais. Para ele, há uma linha tênue que separa o equilíbrio do prejudicial e isso merece atenção. Por isso, estão nos seus planos, em um futuro bem próximo, a criação de uma fundação de bem-estar digital. É quase como que um propósito de vida, ainda mais para alguém que acredita que o objetivo maior do ser humano é florescer. Florescer para o que realmente importa, o que para Nabuco é transformar e afetar o meio positivamente.

Psicólogo e palestrante, dono de uma vasta experiência clínica e acadêmica. Acaba de celebrar 38 anos de profissão com mais de 20 livros publicados. Como você definiria o Cristiano Nabuco?
Um entusiasta que está sempre buscando algo que possa fazer sentido. Os antigos gregos diziam que o objetivo central da vida era ser feliz. Aristóteles falava muito na busca da felicidade. Já tem outra linha que diz que isso não é um objetivo em si e pega emprestada uma palavra da botânica: florescimento. Isso quer dizer que o objetivo maior do ser humano é florescer, ou seja, conseguir transformar as coisas, afetar o meio positivamente e colaborar. Então, posso dizer que meu grande objetivo é florescer.

Quando se descobriu psicólogo?
Foi casual. Tinha uns 17 anos, estava tirando as carteiras para ser piloto e já voando. E comecei a notar que, a cada vez que eu saía de avião, eu queria voltar logo para casa. Era muito bom ir, mas mais interessante e atrativo ainda voltar. Percebi que não ia funcionar para mim ter, todo dia, uma rotina diferente. Abortei a ideia, decidi seguir outra carreira e acabei me deparando com a questão da subjetividade humana. Estou há quatro décadas, acompanhando nossa evolução e posso dizer que estamos entrando no século da saúde mental.

E da tecnologia também.
Sim, houve um crescimento exponencial. Alguns autores vão dizer que o que vivemos hoje, em termos de desenvolvimento tecnológico, seria equivalente a descoberta do fogo há milhões de anos. Nada na história da humanidade mudou tanto. Por trás desta ideia de que a tecnologia tem que suplantar e superar, a mensagem implícita é que a humanidade é o problema e a tecnologia, a solução. E não o contrário. Estamos sendo movidos a essa florescência tecnológica, só que a própria sociedade não avalia o outro lado da moeda. Eu parei para pensar nisso exatamente no momento em que eu montei, há 18 anos, um grupo (Grupo de Dependências Tecnológicas do Hospital das Clínicas, no qual ele é coordenador) no Instituto de Psiquiatria para atender pacientes dependentes de tecnologia.

Equipe do Instituto de Psiquiatria

Este grupo foi, inclusive, o primeiro serviço do tipo no Brasil. Como você, há quase 20 anos, enxergou que a tecnologia poderia tornar-se um tipo de dependência?
No consultório, pacientes já relatavam que a interação deles com a tecnologia era mais prazerosa do que com pessoas. Eles preferiam estar conectados. Já me chamava atenção isso, até que fui fazer uma apresentação em um congresso mundial e, na revista de bordo do avião, li uma matéria que apontava que o Brasil era o país líder de tempo gasto, a partir das conexões domésticas. E olha, estamos falando de uma época de computador com Internet discada. Passados quase 20 anos, continuamos no top 3 de países com maior tempo de uso de telas digitais. Brasileiro gasta, em média, 10 horas e 12 minutos por dia. (para e pensa) O direito diz que todos são iguais perante à lei. E eu digo que todos são iguais perante a tecnologia. Temos uma população planetária de, aproximadamente, 8 bilhões de pessoas e quase 6 possuem telefone celular. A proporção seria mais ou menos essa: a cada 10 pessoas, 6 acessam a internet, ao mesmo tempo em que, a cada 10, 6 não possuem saneamento básico. As pessoas preferem gastar R$ 1.500 no conserto de um aparelho eletrônico, mas não vão ao dentista. É discrepante.

E tem relação com uma de suas postagens no Instagram, que diz “nós somos uma geração triste com fotos felizes”.
Exatamente. A partir de 1996, quando as mudanças começaram a surgir, criou-se um catalisador tão significativo que fez com que a internet virasse a febre do momento. Perdeu-se completamente a mão. Hoje, é sinônimo de avanço você colocar seu filho em uma escola que disponibiliza um tablet, só que ninguém pergunta se de fato isso é a favorável ou não ao ensino. O que nós sabemos é que isso se torna um elemento deletério para a consolidação do conhecimento.

Qual o impacto das telas para as novas gerações?
Temos informações científicas, bastante significativas, que apontam que crianças de 0 a 2 anos devem usar zero tempo de tela. Ao disponibilizar para esta idade, o primeiro efeito é o atraso no desenvolvimento da linguagem. Uma pesquisa francesa mostrou que o uso por apenas 50 minutinhos ao dia por crianças de 0 a 2 anos representam nada menos do que 240 mil palavras não aprendidas, ao final de dois anos. O problema em si, vamos dizer assim, talvez não seja a tecnologia, mas o fato de que ela rouba tempo das nossas interações sociais e isso cobra um preço muito significativo. Até os 5 anos, sabemos que as circuitarias do cérebro estão sendo desenvolvidas. Então, quando você dá um dispositivo para essa criança, deixa de auxiliar o cérebro no processo de consolidação e expansão. Outra pesquisa mostrou que, quanto mais crianças recebem e assistem vídeos customizados, maior o descontrole e regulação emocional entre os 9 e 10 anos, porque elas estão sendo estimuladas na impulsividade. Governo e sociedade ainda não entendem a situação e, quando nós tratamos deste tema, falamos na contramão e somos taxados de cavaleiros do apocalipse. Mas quando chegam no hospital jovens que ficam até 50 horas ininterruptas conectados, sem comer, sem beber, sem tomar banho, urinando e evacuando na calça, para não parar de jogar, percebemos que isso é, de fato, uma doença, um vício, uma dependência.

Como a dependência digital se compara com outras formas de dependência?
Na classificação, temos as chamadas dependências químicas e dependências comportamentais. Na química, pressupõe a ingestão de substâncias. Já nas comportamentais, é a própria repetição do comportamento. É nesta que entram dependência tecnológica, amor patológico, ciúme patológico, compras compulsivas, compulsão alimentar, entre outras. Elas estão no mesmo nível e na mesma circuitaria que produz dopamina, substância que transmite a sensação de recompensa, prazer e satisfação.

Apresentação no Senado Federal, falando sobre escravidão digital

Você acredita que as empresas de tecnologia têm responsabilidade nisto?
O modelo de negócios delas é fazer com que fiquemos cada vez mais conectados e extrai isso da ciência da persuasão, similar ao que acontece com aquelas máquinas caça-níqueis. No fundo, elas não estão preocupadas em desenvolver a saúde mental. Elas querem que naveguemos, porque quanto mais navegarmos, mais vão valer. Alguns indivíduos, inclusive, que desenvolveram esses recursos da ciência da persuasão começaram a se desligar das empresas de tecnologia, porque entenderem que aquilo não seria benéfico. Por exemplo, a rolagem infinita foi criada por Aza Raskin para uma navegação mais amigável e, em vários livros, ele diz que se arrepende de sua criação, porque vai custar milhões de vida. Tem também o primeiro diretor-presidente de uma rede social, que não recordo o nome, que afirma em vídeos que somente Deus saberá o que as redes sociais farão com a cabeça dos nossos filhos. (para e pensa) Há um movimento muito significativo chamado de ciência dos negacionistas. Não é jogar o computador pela janela, mas usar de forma consciente. A ideia que procuramos desenvolver hoje é tentar diminuir esse apego ansioso com telefone, que virou o cigarro de antigamente.

Em entrevista para um documentário

O que ele provoca no cérebro?
Liberação da dopamina.

Como o cérebro reage às notificações de apps e por que elas viciam tanto?
Vamos supor que eu tire uma selfie para compartilhar. No mundo concreto, minha foto teria 50 likes em 3 horas. A rede social entrega isso? Não! Ela vai dar 3 likes na primeira hora, 4 na segunda, 3 na terceira e assim por diante. Minha foto vai aparecer na timeline das outras pessoas em doses homeopáticas. Isso faz com que vá subindo notificação e uma experiência de uma hora, fico checando por um dia. Assim, o uso começa a se tornar fora de controle e até, como chamamos, patológico. Se nós formos utilizar essa tecnologia, que seja feita com parcimônia. Não adianta só dizer para o filho que não deve ficar usando, porque o cérebro dele não está maturado. É só depois dos 25 anos que o nosso córtex pré-frontal, região em que exercemos o freio comportamental, está plenamente em funcionamento. Então, antes disso, biologicamente falando, os jovens não têm força para inibir comportamentos que sejam desadaptativos, fazendo assim com que esse círculo vicioso seja instalado. E mais, na rede social, tenho valorização e validação social. Imagine um jovem com problema de acne, fobia social ou que se sinta inseguro. Na tela, ele pode ser o que quiser e manejar essa possibilidade.

2018, quando do lançamento da versão em português do livro “Dependência de Internet em Crianças e Adolescentes”, escrito em parceria com Kimberly S. Young

Metaverso preocupa?
Terrivelmente. Porque, se os indivíduos conseguem já se abstrair da vida concreta para ficar na tecnologia, imagine quando forem colocados no metaverso com óculos de realidade virtual. Empresas que estão desenvolvendo esses equipamentos estão, através da reação da pupila, sabendo exatamente qual tipo de estímulo agrada o usuário e, com isso, vai despejar mais conteúdo que o interessa, reforçando todo esse problema.

E inteligência artificial?
Meu pai do céu (para e pensa) Acho que, de uma forma ou outra, a inteligência artificial é importante, mas de novo: ficamos deslumbrado só com as benesses, sem olhar para o lado que é extremamente perigoso. A humanidade é muito despreparada. Ela ainda está surfando na perspectiva de que tudo é maravilhoso.

O que mais lhe causa preocupação?
O que me preocupa são os netos, ou seja, os filhos dos nossos filhos digitais. Nós ainda estamos aqui, fazendo essa transição e trazendo uma série de valores que consideramos importantes para consolidação da personalidade. Mas o mundo digital é sem limites, onde tudo pode. Lá você não é imoral, é amoral. Então, nós da velha guarda ainda conseguimos alertá-los sobre o que pode e não. Mas os nossos netos, não, porque eles terão a supervisão de pais que já cresceram nesse mundo digital. Somos testemunhas oculares de uma das maiores transformações da humanidade, que alguns autores chamam de uma nova idade média tecnológica. E eu faço alusão da alegoria da caverna de Platão, que dizia que escravos presos numa caverna que viam sombras projetadas na parede entenderiam que elas seriam as melhores descrições da realidade, até que esse escravo pudesse sair, ter outros graus de consciência e descobrir o que de fato era a realidade. Qual a diferença dos nossos jovens de hoje com os escravos presos lá? Será que eles sabem que o videogame que mata e atira é só uma alegoria ou aquilo começa a ser um modelo possível?

No Bradesco, conscientizando sobre o uso das novas tecnologias

Qual a melhor estratégia para regular o uso?
O grande ponto é que essa utilização seja feita em momentos adequados. Pai e mãe não podem sair entregando o celular para seu filho para servir de babá eletrônica. Estamos navegando em um mundo com efeitos desconhecidos a médio e longo prazos. Não sabemos o que está por trás desse interesse todo. Então, é muito perigoso. Está na hora, mais do que nunca, da sociedade, dos pais, dos jovens se apropriarem que esse grande objeto de desejo, como tudo na vida, tem outro lado e um efeito colateral.

O que tem sido feito para minimizar esses impactos?
No ano passado, fui convidado para participar de um grupo para criação de um documento da ONU sobre a digitalização da educação. O que seria isso? Utilizar a tecnologia de forma positiva para produzir o efeito da aprendizagem. Fizemos um primeiro documento, já disponível em vários idiomas, para que as escolas comecem a discutir não só a utilização, mas aquilo que chamamos de cidadania digital. Quais são os comportamentos que devemos manter e o que que é correto e incorreto? Estamos em um grande divisor de águas. Parte da humanidade que conseguir atingir o equilíbrio será beneficiada, enquanto a outra será jogada de canto e será simplesmente consumidora de mídia, o que pode ser muito perigoso, já que que aliena.

Participando do programa “Opinião”,
da TV Cultura, falando sobre a geração
digital e o impacto na inteligência, ao
lado do psicoterapeuta Leo Fraiman

Falando em cidadania digital, o que é ou não saudável?
O que não é saudável é desenvolver essa checagem compulsiva o tempo todo. Nosso cérebro é um órgão feito para resolver problemas e, a cada vez que abro meu telefone e vejo uma notificação, meu cérebro fala: opa! Essas empresas criam sistemas que chamam atenção e faz com que você fique o tempo todo olhando. O caso dos jovens é ainda mais curioso, porque quanto mais eles forem interrompidos, maior é a noção de valor social que eles têm. Porém, o que ninguém conta é que, quando sua atenção é interrompida, e uma pesquisa da Universidade da Califórnia vai mostrar isso, você leva nada menos do que 27 minutos para recuperar o mesmo ponto de antes de ser interrompido. Os chineses vão dizer que, hoje, vivemos a chamada epidemia da distração. Embora estejamos vivendo a era da informação, essa informação não está sendo transportada para memória de longo prazo e, portanto, não se transformando em conhecimento.

Quer dizer que estamos emburrecendo na era digital?
Sim! Vários autores dizem que o QI Mundial vai aumentando três pontos percentuais a cada nova geração, só que isso não vem ocorrendo mais. O índice não está mais subindo como acontecia e, em alguns casos, até declinando. Eles têm chamado essas gerações, a partir de 1996, de perdidas. Essas pessoas não terão condições de se aprofundar em material mais denso, tampouco ter uma capacidade criativa. Está todo mundo distraído no seu telefone celular e a vida segue. Dias desses, um câmera da Globo disse uma coisa interessante: na nossa época, tínhamos os objetivos que queríamos atingir, mas não tínhamos os meios. Qual a diferença para hoje? Essa geração tem os meios, mas não os objetivos. Outro autor vai chamar essa geração de viciada em dopamina, que precisa se auto satisfazer o tempo todo e criando esse processo de que aparecer nas redes sociais é o elemento mais fundamental. Uma pesquisa feita no Reino Unido avaliou 6 mil adolescentes e 51% deles disseram que se sentiriam mais felizes se as redes sociais nunca tivessem sido inventadas. Porque elas criam uma necessidade de você postar e curtir e, se não for curtido, é sinal de que não está sendo aceito. A ideia de virar um influencer digital se sobrepõe à vida real. O desenvolvimento humano é marcado pelos desenvolvimentos intelectual e emocional. Mas a tecnologia não dá bagagem emocional, só frustração.

Com Gloria Perez, em 2019, quando começaram as primeiras reuniões de consultoria para a novela

Você está auxiliando Glória Perez na produção de alguns personagens da novela Travessia, compartilhando conhecimento a respeito dos riscos do consumo excessivo de telas digitais e, mais, como isso pode vir a afetar a saúde dos usuários. Como aconteceu?
Em 2019, a Gloria Perez entrou em contato comigo, dizendo que gostaria de incluir numa novela um personagem que fizesse uso abusivo da tecnologia. Conversamos várias vezes, ela participou de encontros com diversas famílias e ficou muito assustada com o que viu. O grau de dependência era muito maior do que ela imaginava. Só que veio a pandemia e eu achei que o projeto tivesse sido engavetado. Mas, de repente, ela liga, dizendo que estava escrevendo a novela e não era apenas um personagem, mas outros também iriam costurar os temas. Passei a ir para o PROJAC para assessorar e, no meio do caminho, me colocaram para atuar também. E está fazendo um sucesso danado. (risos)

No ar, na novela “Travessia”
Com a atriz Indira Nascimento, que interpreta a mãe de um filho dependente tecnológico

Qual a importância de uma novela trazer este tema à tona?
Eu acho que é uma das melhores formas de conscientizar para o problema. O que tem sido muito bacana é a quantidade de pessoas que tem me procurado, via Instagram, e eu posso encaminhá-las para orientação. Estamos conseguindo mesclar ficção com realidade, deixando uma mensagem muito importante de que isso é, sim, um problema e urgente para se resolver. A novela tem servido muito desse papel de alertar sobre certos comportamentos preocupantes. Tem demonstrado de forma mais vívida o que verdadeiramente acontece. Eu já estava acostumado a ouvir relatos dramáticos, principalmente, lá no Hospital das Clínicas. Mas por conta de Travessia, tenho recebido outros. Esses dias uma mãe me escreveu, relatando que desligou o computador do seu filho e ele foi atrás dela com uma arma na mão mandando que ela ligasse imediatamente. Tem casos de violência física. É um assunto bem sério. Esse é o mérito da Glória: trazer um tema que nunca ninguém abordou e que nós, enquanto grupo de estudos, estamos falando há 20 anos. A novela tem ajudado a dar voz a esse problema.

Você tem usado o Instagram para transmitir dados e mais informações sobre a questão. Como tem sido isso?
Gravo, em média, dois vídeos por semana. Leio um artigo e transformo em uma linguagem mais simples. Tem me surpreendido, porque há vídeos que viralizam muito além do que eu pudesse imaginar. Fico feliz, porque estou fazendo isso com o único objetivo de ajudar. Eu não tenho rede social para me autopromover.

O que você destaca da sua carreira?
Minha inquietude para fazer a diferença e trazer conhecimentos e técnicas terapêuticas que ainda não tenham sido vistas. Uma coisa que trago das aulas de aviação era algo que meu professor sempre dizia: quando você tiver pilotando, tem que olhar muito lá na frente, porque um dos maiores perigos são os urubus que podem derrubar o avião. Então, um elemento importante é sempre olhar adiante. Uma característica minha é estar antecipando coisas que podem vir a acontecer, tenho facilidade de farejar coisas. Acho que um defeito da ciência como um todo é que a hora que se percebe o problema, ou ele já não existe mais ou se agravou. É como obra pública: quando ela é lançada, talvez nem faça mais diferença. Quando criamos o grupo de estudos, um psiquiatra famoso me disse, brincando: ‘pois é, né, Cristiano, agora você vai atender os dependentes digitais, está inventando uma nova doença psiquiátrica’. Passados 20 anos, essa doença figura nos manuais internacionais. Claro que não inventei, mas era algo que eu percebi e senti que precisava engrossar o coro mundial.

Qual o limite entre o uso inteligente e aquele que pode ser prejudicial?
O uso ideal é aquele para melhorar a qualidade de vida, não para nos aprisionar e nos tornar dependentes.

Como saber se somos dependentes?
Um sinal de alerta é quando você passa a negligenciar atividades offline para preferir as online. Você pode perguntar se isso não é uma tendência natural. Sim, é! Vamos, cada vez mais, nos tornar tecnológicos. Mas precisa existir compasso. O cérebro se desenvolve a partir do olho no olho, da relação, da troca, da frustração, da raiva. É exatamente essa área turbulenta das relações que cria o contorno psicológico da vida adulta. Só que, na Internet, você pode se poupar daquilo que não te agrada, fazendo com que perca, progressivamente, sua inteligência emocional e capacidade de manejo das situações de estresse. Nesse ponto, a escola é muito importante, porque ela ajuda a construir essa coletividade.

Por isso, em algumas escolas do Vale do Silício, o uso da tecnologia não é permitido?
Sim, são as chamadas tech less school. Lá, não é permitido o uso da tecnologia e, inclusive, o é desestimulado até em casa. Antes dos 8 anos, zero de tela. Se os CEOs das grandes empresas de tecnologia não querem que os filhos fiquem conectados, por que nós devemos deixar os nossos?

Durante o 2º Congresso Internacional de Educação Parental, Nabuco mostra dados sobre número de horas que as crianças passam na internet e o equivalente em tempo de estudo

Existe uma recomendação a respeito do tempo de tela permitido?
De 0 a 2 anos, zero de tela. De 2 a 5 anos, uma hora, mas longe das refeições. Dos 5 aos 10, pode aumentar um pouco. (para e pensa) Claro que, com a pandemia, essa orientação caiu por terra, já que a tela se transformou na nossa única janela para o mundo. A questão é: nós podemos usar sim, mas desde que façamos uma única coisa. Veja, se vou ler um livro no tablet, mas não posso deixar o celular ao lado vibrando para me interromper. Devo fazer uma coisa de cada vez. É exatamente essa atenção fragmentada que prejudica e estressa.

E para adultos, tem algum tempo ideal?
Não dá para mensurarmos isso. O que pesquisas tem mostrado é que a terceira idade, por exemplo, tem se beneficiado da tecnologia. Porque ela força o idoso a ter contato com novas ferramentas, uma informação nova e isso ajuda a oxigenar o cérebro.

Qual é a sua definição de dependência digital?
Quando a pessoa começa a utilizar as telas de forma que deixou de ser benéfica.

Uma frase sua afirma que a dependência é uma doença do cérebro, não uma escolha moral. Explique.
As dependências não são determinadas por um único elemento. Isso quem nos ensinou foi a epigenética, corrente que estuda o quanto o ambiente auxilia na manifestação de um problema. Por exemplo, filhos e netos de indivíduos que passaram em campos de concentração tem 3 ou 4 vezes mais chances de desenvolver as mesmas doenças que seus ascendentes diretos. Então, o que acontece é que o indivíduo acaba se tornando dependente se ele já tem uma predisposição biológica e se está em um ambiente que puxa o gatilho. Em famílias com a mesma educação, cada um reage ao estresse de forma distinta. Tem quem vai ficar só um pouquinho, enquanto o outro se torna dependente. Você nunca sabe como o indivíduo vai interagir com essa estimulação do meio.

Você que está acostumado a receber seus pacientes, vê algum denominador comum entre eles?
Baixa autoestima, grupo de referência irregular, características psicológicas mais frágeis e famílias desestruturadas. É um combo, onde essa equação tem vários elementos que se somam. Essas pessoas acabam buscando na internet o que eles não acham nas relações. Tem uma frase que gosto muito, é da americana Sherry Turkle, que diz que a tecnologia entra na vida de uma pessoa quando a relação humana não ocupa o seu devido lugar.

O que fazer para se desligar, pelo menos, um pouco?
Achar coisas que você entenda que sejam positivas, que te distraiam e, ao mesmo tempo, tragam satisfação e prazer. É isso!

E você como usa a tecnologia?
Eu uso muito e, confesso, brigo para tentar usar menos. Sinto que, às vezes, me prejudica, porque é muita requisição, muito pedido e eu fico exaurido. São muitas mensagens por dia, via Instagram, e eu mesmo respondo a todas porque são pessoas me pedindo ajuda e orientação.

Cristiano Nabuco em família, na Granja Viana

Por fim, vamos falar da sua relação com a Granja Viana.
Cheguei aqui há quase 30 anos. Queria comprar um terreno e vim por indicação. Me encantei com o local e não havia nada em volta. Na época, a Raposo era uma maravilha. (risos) Fomos assistindo a essa transformação toda, mas continuo gostando muito. Não sairia daqui, só se tivesse que me mudar para outro estado talvez, ou alguma outra condição. Eu curto essa pegada mais próxima e informal, que em outros locais você não encontra. Aqui você pode ser quem você é, sem medo. E tem essa qualidade de vida maravilhosa.

Dicas de lugares por aqui para desconectar?
Ah, o lago do Pallos. (sorri) E caminhar pelas ruas da Granja.

E o futuro, Nabuco?
Pretendo montar uma fundação para atender esses dependentes tecnológicos, porque o sistema público não dá conta e não está preparado. Assim que terminar a novela, vou começar a montar o que seria uma grande fundação para dar treinamento para profissionais atenderem essas pessoas e orientar famílias. Aí sim eu vou começar a sentir que estou fazendo algo importante.

Por Juliana Martins Machado

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