A noite é de chuva forte. Pré Carnaval. Em um condomínio de classe média alta da Granja Viana, mulheres alegres, empodeiradas e divertidas dançam e cantam marchinhas de carnaval. A churrasqueira (elétrica) não para de funcionar e quem pilota é dona da casa. Não há homens no ambiente, apenas mulheres que buscam entre si a força para recomeçar. Entre uma marchinha e outra, uma história que veio sempre acompanhada de lágrimas e lembranças tristes que talvez não se apaguem nunca da memória.
Uma delas é a de Maria (nome fictício que cabe para todas as mulheres das histórias que vamos contar), 41 anos, profissional da área de Segurança Pública, mora em Cotia, mas poderia morar em Itapevi, Carapicuiba, São Paulo, no Oiapoque ou no Chuí. Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que 536 mulheres são agredidas por hora no Brasil, são vítimas de violência doméstica ou vivem em relacionamentos abusivos que, muitas vezes, terminam de forma trágica.
De acordo com dado da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, só no segundo semestre de 2018, 24,5 mil mulheres registraram boletins de ocorrência por lesão corporal dolosa (quando há intenção de cometer o ato). Outras 28,3 mil se queixaram de ameaças e 4,7 mil mulheres foram às delegacias de São Paulo e registraram boletins por injúria, calúnia e difamação contra seus companheiros. A cada 36 horas, ao menos uma mulher é vítima de feminicídio em São Paulo, de acordo com levantamento do jornal O Globo.
Maria estava separada do marido há 15 dias, no dia desta entrevista. Nos seus olhos, era possível ver um misto de mágoa, tristeza, vergonha e, ao mesmo tempo, de liberdade, de alívio. Ela conheceu João (outro nome fictício) aos 19 anos, em seis meses estava grávida e decidiram se casar. Um casamento de 22 anos com muitas idas e vindas.
Ela tinha uma vida tranquila e estável financeiramente, não trabalhava, não estudava, não tinha formação, era totalmente dependente de seu marido. Situação que mudou aos 25 anos, quando ela voltou de uma viagem com o filho e descobriu que seu marido tinha outra mulher. “Fiquei sem chão. Não tinha estudo, nem emprego, era uma mulher fútil e com um filho pequeno… – em meio a lágrimas e voz embargada – Ai tentei suicídio.” Engoliu todos os remédios que tinha em casa, mas foi socorrida por uma amiga e salva no Hospital de Cotia. “Aquilo me fez pensar em mim, na minha vida”.
O casamento não terminou, mas Maria mudou. Decidiu arrumar um emprego e foi estudar Direito. “Achava que ele gostava muito de mim. Até hoje eu não sei se eu gosto ou se foi pela questão da estabilidade que ele me dava”. Se deu conta de que ele bebia muito, era alcoólatra e usuário de cocaína, passou a ser violento e agressivo, “começamos a perder o respeito um pelo outro. Ele é um homem maravilhoso. Mas o problema é quando ele bebe ou usa cocaína”.
Há três anos, quando pensou em separar novamente, descobriu um câncer de mama e uma gravidez, de risco devido ao tratamento de quimioterapia. Em lágrimas, Maria narrou os momentos mais doloridos de sua vida, quando teve que optar entre sua vida e o bebê que gestava. Sozinha. Apesar de casada, o marido não estava por perto. Optou por manter a gravidez. Ficou mais de 30 dias internada no hospital até o bebê nascer aos oito meses de gestação. Enrolado no cordão umbilical estava praticamente morto, mas segundo ela foi literalmente “ressuscitado” pelos médicos. “Eu estava sozinha”. Hoje o bebê já está com pouco mais de dois anos e é uma criança saudável. “No dia que meu filho teve alta, não tinha ninguém para me buscar no hospital” (lágrimas, mais lágrimas). “Mas eu acreditava que ele era um homem bom, o casamento estava bom, porque ele não trazia problemas”.
Maria teria mais um longo ano pela frente. O marido passou a usar mais bebidas alcoólicas e cocaína e ficar mais violento.
“Eu via tudo isso no meu trabalho, e falava: ‘por que essas mulheres aceitam uma vida desse jeito?’ Mas eu estava ali naquele momento igual a elas e não conseguia sair de casa. Porque eu tinha uma vida estabilizada, uma casa boa em um condomínio. Como ia sair daquele conforto todo, pagar aluguel não sei onde? Ai comecei a entender o que essas mulheres passam.”
Apesar da piora na relação, do desrespeito, das agressões físicas e morais, Maria nunca foi à delegacia fazer um Boletim de Ocorrência contra o marido por pensar nos filhos, no emprego e na família. E também pensava: “Quando ele não está drogado ou bêbado é uma pessoa maravilhosa, vou acabar com a vida dele fazendo isso”.
A gota d´água foi quando a agressão aconteceu contra seu filho mais velho, então com 20 anos. “Meu filho me ligou desesperado porque o pai estava transtornado”.
E o tumultuado casamento de 22 anos chegaria ao fim. “Decidi que não ia dar mais para viver deste jeito e sai de casa, larguei tudo. Fui embora para casa de minha mãe com meus filhos”. Hoje, Maria paga aluguel numa casa simples, ainda não tem todos os móveis, está ajeitando aos poucos. “Não fiz um BO contra ele, mas consegui sair de casa. Estou começando uma nova vida”.
“Tudo era lindo e maravilhoso”, lembrou Simone, design de interiores, 42 anos dos quais 18 foi casada com um empresário, com quem tem uma filha de 11 anos. Mora em uma casa confortável em um condomínio de alto padrão na Granja Viana.
Com a vida estabilizada, deixou de trabalhar e passou a ser apenas dona de casa e se dedicar à família com exclusividade. Era mais uma família tradicional brasileira.
De novo, o alcoolismo seria um dos responsáveis por mais uma família desfeita e uma mulher desiludida.
Com voz forte e cabeça erguida, Simone (nome fictício) relembrou os bons e maus momentos de seu casamento. O marido sempre bebeu muito, o que era comum em seu ambiente de trabalho, amigos e família. “Como era tudo festa, parecia tudo natural. As pessoas riam dos bêbados, achavam engraçado. A gente vive numa sociedade tão machista que o homem quando xinga, quando bate porque estava bêbado ou nervoso, é natural. A mulher não, se ela falou alto, gritou, xingou é louca e se bateu então, vão interná-la”, lamenta. “A gente é acostumada a se conter e achar isso natural. Eu nunca fiquei confortável com isso, mas fui levando, achando que eu era exigente demais”.
E o tempo foi passando, o vício – que ele negava existir – foi aumentando e com isso também aumentaram as confusões, agressões verbais e físicas. “Ele tinha uma paranoia, achava que alguém estava olhando pra mim, que eu estava olhando pra alguém, eu passava muita vergonha”.
Além de agressões físicas, Simone relata muitos momentos de humilhação e tentativas de diminuí-la público com comentários jocosos e machistas. Para amenizar, ela passou a não sair mais de casa, não se arrumar para não dar motivos para brigas e vexames públicos. “Fui ficando cada vez mais incomodada com isso e perdendo a paciência. Gritava com ele, não sabia lidar com ele bêbado. Quando a bebida ia embora, ele parecia uma pessoa maravilhosa. No dia seguinte, me dava presentes, cachorro, viagens e todos elogiavam o marido que eu tinha.”
Ao contrário de Maria, Simone foi à delegacia, registrou boletim de ocorrência e fez exame de corpo de delito. Mas ainda assim, em busca de salvar o casamento, relata que fez tudo o que pode, foi pra igreja, nos grupos de ajuda Alcoólicos Anônimos e Amor Exigente. Mas as alternativas foram se esgotando. “Venho num processo lento e contínuo. Fui me afastando dele aos poucos, até que virou um abismo entre a gente”.
Finalmente, tomou coragem e fez as malas dele. “E ele foi. Sinto falta dos momentos bons, por incrível que pareça ele era muito carinhoso, às vezes sinto muita falta dele. Mas sinto mais falta de mim”.
“Acho que estou contaminada, não tenho olhos para homens. Não acredito que exista homens que respeitam mulheres, a gente vive numa sociedade machista, em todo lugar e subliminarmente se mostra o poder do homem, a falsa ideia de que um homem com uma mulher, um lancha, um whisky e um charuto é o ser mais feliz do mundo. E a mulher está sempre em busca de um homem para ser feliz. Essa ideia precisa ser desconstruída. Hoje, estou em busca disto, de desconstruir essa ideia. Estou bem desiludida. Mas tenho certeza que vou superar.”
“Eu recebia flores todas as sextas. E quando floricultura estava fechada, recebia flores de jardim e enchia de formiga meu travesseiro. Era um amor, eu lavava a garagem no fim de semana e ele chegava me pegava no colo e girava. Os vizinhos achavam que a gente era o casal referência do condomínio”, relatou Cristina. Seu segundo casamento, de 12 anos, era um conto de fadas.
Neste caso, o motivo da discórdia do casal foi a filha dele. “Fiz de tudo por essa minha enteada, mas não adiantou, ela queria o pai só para ela”. Durante os 12 anos, a enteada de Cristina causou muitas intervenções na união. E a adolescente tanto fez que conseguiu influenciar a cabeça do pai “e quebrou o elo de família”.
Apesar de se dar muito bem com o marido, a diretora de escola não conseguiu reverter a animosidade e o clima tenso com a enteada e não pôde contar com o apoio do marido, que não aceitou que ela tivesse feito um Boletim de Ocorrência contra a jovem após ter sido agredida. “Tomei um soco na cara”. Para reverter a situação a favor da filha, o marido foi à delegacia dizer que agressão havia partido dela [da esposa].
“O cristal se quebrou. Fiquei muito triste, perdi o chão porque desconhecia totalmente aquela pessoa que dormia ao meu lado há 12 anos”.
Em outra ocasião, a menina disse ao pai que havia visto Cristina beijando outro homem. “Ele colocou um travesseiro no meu rosto e meu deu cinco socos”. Ao contrário de muitas mulheres, ela registrou vários boletins de ocorrência contra o marido, e segundo ela isso ajudou no momento da separação de corpos.
Foram três anos de sofrimento até a separação. Cristina ficou sem trabalho, problemas de saúde, entre eles um câncer, fez algumas cirurgias, chorava o tempo. “Eu não conseguia reagir, pois eu tinha que lutar contra o amor que eu tinha no peito. É muito difícil você ter que por para fora de casa o homem que você ama. Mas tinha que me amar mais do que ele”. E foi buscar ajuda profissional, de amigos e familiares para superar.
Separada há um ano, ela se diz plena. “Sou outra pessoa, me sinto fonte de energia, estou feliz e voltei a ser o que eu era, o próximo é melhor que o último. Estou quase pronta para o próximo. Acho que uma hora vai pintar uma pessoa legal, vai dar um gelinho na espinha e a gente vai ser feliz.”
Guardiã Maria da Penha e botão do pânico
Criado em março de 2018, por meio de uma parceria entre a Prefeitura de Cotia e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o programa Guardiã Maria da Penha consiste numa ação preventiva e protetiva nos casos de violência contra as mulheres. A Guarda Civil de Cotia acompanha e monitora mulheres que estão com medida protetiva, ou seja, aquelas em que os companheiros ou ex-companheiros não podem se aproximar delas ou colocar em risco sua integridade física.
Formada por guardas capacitados, com cursos em Curitiba, onde há uma equipe modelo, a Guardiã possui viatura e sala própria na Inspetoria Central da Guarda Civil.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de Cotia para entrar em total funcionamento, aguarda “apenas uma demanda da Promotoria de Justiça”.
“É importante ressaltar que toda a Guarda Civil Municipal está preparada para combater a violência contra a mulher no município. Quando a Guarda recebe um chamado de violência doméstica, a viatura mais próxima do local é destinada ao atendimento e qualquer guarda pode e deve atender a ocorrência”, diz nota da Secretaria.
O convênio com o Tribunal de Justiça garantiu à cidade o Anexo de Violência Doméstica, instalado no Fórum de Cotia, cuja função é analisar e dar encaminhamento aos processos de violência contra mulheres.
Uma vez expedida a medida protetiva, o juiz do caso encaminhará o processo para a Guardiã Maria da Penha, que fará visitas periódicas a esta mulher e atuará sempre que a vítima se sentir ameaçada.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de Cotia, até 2018, qualquer tipo de agressão entrava num raio comum de atendimento da Guarda Civil. Com a criação do programa, a Guarda passou a medir as estatísticas como violência doméstica. Até dezembro do ano passado, 33 casos foram registrados pela Guarda na cidade.
Todas as mulheres com medidas protetivas terão à sua disposição o ‘Botão do Pânico’. Trata-se de um aplicativo pelo qual ela poderá acionar a Guardiã, caso se sinta ameaçada. O sistema é ligado à central da GCM que terá a localização da vítima e enviará a viatura mais próxima ao local.
Nenhuma mulher é obrigada a usar o sistema, trata-se de uma adesão voluntária e ela conhecerá tudo sobre ele no Anexo de Violência contra a Mulher. Mesmo que a vítima esteja em outra cidade, a GCM terá a sua localização e poderá solicitar ajuda à segurança daquela região.
De quem é a culpa?
“Tudo que acontece na vida de duas pessoas é de responsabilidade das duas pessoas. Sempre. Cinquenta por cento para cada uma; a menos que uma delas esteja com uma arma na cabeça. Uma mulher só fica em uma relação abusiva porque se permite, é conivente. Você pode odiar, se sentir mal, mas você permite”.
O alerta é da Psicóloga Cláudia Castilho, especialista pós-graduada em Terapia Cognitivo-Comportamental – TCC, com consultório na Granja Viana. Nove de cada 10 mulheres que fazem terapia com ela, vivem ou viveram relacionamentos abusivos ou sofreram algum tipo de violência de seus parceiros.
Como já testemunhado, a relação não começa abusiva, “começa linda e maravilhosa, o cara é atencioso, legal, cuida, se preocupa, tá sempre ligando para saber onde está e com quem, para onde vai. Isso parece um carinho, mas nem sempre é”. Segundo a psicóloga, muitas vezes esse tipo de comportamento, confundido com amor pode se tornar obsessão e desencadear para uma relação violenta e agressiva. E quando se fala em agressão, ela nem sempre é apenas física, mas também psicológica, sexual moral e patrimonial.
E embora ocorra com menos frequência no caso inverso, de mulheres em relação aos homens, são as mulheres as principais vítimas. Os números estão aí para comprovar isso.
Então se você mulher que está lendo esta matéria agora, perceber que a qualidade de seu relacionamento caiu, que se afastou dos seus amigos porque seu companheiro sempre tem um objeção a eles, se preocupa mais com o que outro pensa do que o que você quer, se sente que sua liberdade e direito de ir e vir estão sofrendo algum tipo de sansão, é preciso ficar atenta, você pode estar numa relação abusiva. “O homem vai minando, tirando as forças da mulher e ela não percebe. Porque parece que ele está do lado dela”.
Dá pra reverter uma relação abusiva? A dica da psicóloga é, ao menor sinal de abuso, procurar ajuda e tentar se impor para ver se essa relação se ajeita. Ou sair dela. Para, ela é preciso ter consciência do que está por trás de uma relação abusiva, e sempre se perguntar: por que sou conivente com isso?
Mas se não procurar uma ajuda profissional, há o risco de sair de uma relação abusiva e cair em outra e em outra, porque muitas vezes a mulher acaba se deixando levar por uma relação abusiva porque já tem um perfil fragilizado e acaba se vinculando a alguém que a protege, cuida, domina e toma as decisões por ela. “E sem perceber que está sendo dominada, controlada. A forma como eu me relaciono com o outro vai determinar quem eu vou escolher. Em minha opinião, o amor tem muito mais a ver com a forma como o outro me faz sentir. O cara pode ser sensacional, mas se não fizer com que eu me sinta bem eu não tenho como amar esse cara.”
(Por Sonia Marques)
A máscara caiu e o sonho de viverem felizes para sempre acabou…
Tudo começa colorido, bonito, feliz, com planos de “vivermos felizes para sempre”. Mas nem sempre é assim... A história de 3 mulheres que viveram casamentos abusivos, foram vitimas de violência domésticas, se viram no fundo do poço e separadas dos maridos violentos, buscam um recomeço. De quem é a culpa quando o um relacionamento que deveria ser de amor se transforma em pesadelo? A quem as mulheres podem recorrer?