Angela Turrin mora na Espanha, um dos países mais afetados pela covid-19. Em mais uma reportagem da série com pessoas da região que contam como estão enfrentando a pandemia por aí, a granjeira relata como o país europeu conseguiu frear o número de casos e como ela “inventou atividades divertidas para fazer em casa” no período de confinamento.

A Espanha começou a reabrir, em maio, as portas e se preparar para a vida pós-covid-19. Após 98 dias, viveu no sábado (20/06) o seu último dia do estado de alerta. “É o que estamos chamando de nova normalidade”, define Angela Turrin, granjeira de nascimento que se mudou para Espanha em 2001.
O país teve os maiores casos de mortes na Europa, então a ordem foi fechar e rápido “com controle central para uma resposta coordenada”. “No dia 14 de março, o governo espanhol declarou estado de alarme, centralizou os poderes das comunidades autônomas – que, no Brasil, faz referência aos Estados – e pegou os poderes de todo o sistema sanitário, inclusive os seguros privados. Toda a gestão foi coordenada por uma equipe técnica com um dos melhores médicos nesta questão”, explica Angela.


Por mais de três meses, os espanhóis estiveram confinados com limitações de movimento e consumo. “O país inteiro fechou e a gente só saía para compras de alimentos e remédios e em lojas perto de casa. Eu não podia, por exemplo, pegar a autopista para ir em um supermercado a 5 km daqui. Eu tinha que comprar nos que estivessem abertos perto da minha casa”, comenta.
As autopistas – rodovias duplicadas, que contam com poucas saídas ao longo do percurso e que não atravessam nenhuma cidade ou vilarejo – foram fechadas. Todo o percurso e a quantidade de pessoas nos carros – só era permitida uma só – eram controlados pelas polícias – a nacional, a local e a militar, essas três forças da ordem foram chamadas para fiscalizar e aplicar multas.

“A única vez que eu saí de casa para fazer uma compra no Carrefour, a polícia militar estava armada dentro do supermercado, controlando os itens que as pessoas levavam, para não ter falta de nada. Nunca ficamos sem acesso a produtos de limpeza ou de alimentos. Se faltava num dia, no outro já tinha. O supply chain – conexão entre os supermercados e toda a cadeia de logística – na Espanha foi maravilhoso”, revela. Neste dia, inclusive, ela queria comprar uma planta para a vizinha e foi impedida. “Eu só podia comprar produtos essenciais, que era alimentação e limpeza. Se eu quisesse um sapato, uma meia, uma calça, tinha que ser online, mas não podia levar do supermercado. Isso era para evitar o tempo de exposição que as pessoas ficavam ali dentro. Era para entrar, pegar o essencial e ir embora”, lembra.
Ela – que trabalha numa missão diplomática com relações internacionais e comércio exterior – avalia como positiva as medidas rígidas adotadas pelo governo para frear a pandemia no país. “Teve controle, porque não era cada um fazendo o que queria, com critérios soltos”, descreve. O processo espanhol de retomada das atividades foi dividido em etapas e as cidades de Madri e Barcelona foram as últimas a passar de fase. “Foram divididos em 4 etapas. Na fase zero, o governo precisava ver que o estado era autossuficiente com a gestão dos recursos, dos supplies, do material sanitário e da atenção primária de saúde e que a curva de novos casos estivesse diminuindo. Madri e Barcelona não passaram de cara e, quando conseguimos avançar da 0 para a 1, outras regiões já estavam na fase 2”, diz.
Agora, com o fim do estado de alerta, as regiões estão todas no mesmo nível. As restrições de mobilidade foram encerradas, mas não significa o fim das medidas de distanciamento social e de reforço na higiene. O uso de máscaras será obrigatório quando não se puder respeitar a distância de 1,5 metro sob pena de multa de até 100 euros (R$ 590). “Em casa, você não pode receber mais que vinte pessoas. E se um vizinho ver, ele pode denunciar. Vizinhos tem denunciado várias coisas aqui e, quando é feita a denúncia, vem polícia e aplica multa – e elas são altas”, conta. E as piscinas abriram com 50% de ocupação e critérios extras de higiene.
“Novo normal”, segundo ela:
churrasco ao ar livre, sem contato e grupo pequeno
A partir de 1º de julho, a Espanha abre fronteiras para voos da União Europeia. Quer dizer, os turistas vão poder começar a entrar no país e já tem hotéis lotados. Um setor que está crescendo muito é o de caravana, os europeus adoram esse tipo de viagem, mas os espanhóis não eram muito fãs e agora estamos vendo um boom nesse tipo de serviço. Então, o turismo vai pouco a pouco voltar, mesmo que com medidas diferentes”, comenta.
Angela explica que o sistema político da Espanha é de coalizão de centro-esquerda e muitos pactos sociais foram feitos para proteger a população mais desfavorecida ou em risco de exclusão. “As patronais e sindicatos apoiando as decisões, seguro-desemprego, banco de alimentos, tudo isso foi feito. Quando a obrigatoriedade do uso de máscara foi aprovada, o governo fez a distribuição gratuita para toda a população no sistema de transporte, nos hospitais, nos supermercados. Outra coisa que eu achei bem interessante do approach espanhol foi a taxação dos máximos de preço para venda de álcool gel e máscara. O preço era tabelado, não era livre comércio, não era para especulação”, conta. Seu marido, que é autônomo, recebeu do governo um subsídio “bom”, como faz questão de ressaltar, e teve impostos devolvidos. “A IVA, imposto do valor agregado que pagamos em alguns serviços e produtos, também foi revisado”, completa. Para ela, apesar da perspectiva econômica de queda do PIB nos próximos meses, se fosse outras circunstâncias, “o tsunami seria muito maior aqui nesse país”.
Agora, de acordo com ela, a situação política no país está mais conflitiva. “Como não há mais mortes, a extrema-direita está olhando mais para a economia e apontando outros problemas que, antes, ficaram relevados a um segundo plano”, explica. Apesar do conflito político atual, Angela aponta que a crise do coronavírus trouxe muitas mais mudanças positivas do que negativas. “A Espanha está mais alinhada com a União Europeia e haverá um fundo para recuperação. Mesmo com as previsões econômicas mais pessimistas, a minha impressão é que a economia espanhola vai remontar e bem rápido”, acredita.

O filho de Angela tem 12 anos e, durante este período, fez homeschooling. “O último dia de escola do meu filho foi em 11 de março e, desde então, ele esteve em casa estudando on-line. Eram três horas por semana conectado no Zoom e no resto, fazia as atividades sozinho. Claro que houve dificuldades, horas em que a tecnologia não funcionava e a rede do wi-fi dava problemas, mas os professores foram super flexíveis. Ele estuda em uma escola pública bilíngue aqui do lado de casa e achei excepcional o trabalho que o sistema público fez para manter as crianças estudando e mantendo as notas. O Ministério da Educação falou que não ia reprovar ninguém, por mais mal que estivessem. Vão dar reforços agora durante o verão para preparar para o curso de setembro, que é esperado ser presencial”, comenta.

Durante este período de lockdown, ela e a família ocuparam o tempo realizando atividades juntos. “Nós somos muito afortunados aqui. Temos uma casa com jardim, então tomávamos sol todos os dias do lado de fora. Fazíamos ginástica, cozinhávamos, limpávamos a casa, tudo juntos”, conta. Ela aproveitou para cuidar das flores, plantou uma horta e inventou uma série de atividades divertidas para fazer em casa. “Aqui em casa, nunca ninguém ficou entediado honestamente. A gente fez jogos de mesa, manualidades, cozinhou, conversou, se irritou, brigou, chorou, gritou, pediu desculpas… tudo isso foi um exercício de musculação da capacidade de resiliência”, completa. Ela manteve o seu trabalho, fazendo mentoring com as pessoas que podia e se engajando em reuniões virtuais de desenvolvimento pessoal, de espiritismo, de yoga, de ginástica e de cursos online de todo tipo de especialidade. “Então, eu me mantive extremamente ocupada. De entediada, nada”, ressalta.
Claro que houve momentos de frustração e tristeza. “Principalmente, por ver o sofrimento de amigos que estavam perdendo seus pais, a tristeza de perder amigos para a doença, a angústia de ter família na Itália e, especialmente, por minha irmã estar morando na Califórnia, minha mãe na Flórida e eu em Madri. A nossa distância sempre foi uma fonte de sofrimento, mas eu acho que nós três somos extremamente positivas e lutadoras. Quando você é imigrante, sempre olha o melhor lado de qualquer situação e tentar aportar para contribuir na sociedade onde você está”, fala.

Sua irmã, Sandra Turrin Sambugaro, mora há 14 anos nos Estados Unidos e, há 5, trabalha em esquema home office para a Microsoft. Por isso, ela pode deixar, por um período, o marido e filhos no Vale do Silício (Califórnia) para ficar em lockdown com sua mãe, já idosa, em Coconut Creek (Flóriada). “A conexão com a minha irmã e o fato dela ter ficado com a minha mãe na Flórida foi importantíssimo, porque me deu a segurança psicológica que eu precisava para saber que elas estavam bem, né? E para ela, foi divertidíssimo passar esse tempo juntas. Fizemos facetime, nos falamos várias vezes por dia… o fato de estarmos cada uma em uma cidade, nunca nos separou. Nós provamos que o amor realmente é mais resiliente do que qualquer distância”, conta emocionada.
Por fim, para ela, este período serviu para observar e se conectar com a natureza. “Eu não vi mais avião passar em cima da minha casa e aumentou a quantidade de javalis, cobras, patos que estão voando em volta e vem tomar água na piscina… Em Madri, as ovelhas puderam entrar, pela primeira vez, na casa de campo, sem nenhuma interferência humana e estavam felizes lá. Pudemos ver a natureza responder de uma maneira brutal e rápida, na ausência dos humanos”, revela.
Angela aposta que sairemos melhores: “temos que sair dessa sendo melhores e fazendo melhor”. Ela disse que esse período a fez refletir sobre consumismo e como podemos viver com menos. E, sobretudo, a faz pensar sobre conexão. “Encontrei outras formas de me conectar com as pessoas. A conexão virtual também pode ser muito profunda, se aprendermos a fazer isso. Conectar com valor ao que realmente importa e descartar todo o supérfluo, isso é o que eu levo como lição aprendida”, finaliza.
Por Juliana Martins Machado