Ex-diretor presidente da Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo (Emplasa) e ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU), o arquiteto Sylvio Sawaya afavelmente recebe a reportagem. Na própria rua, o paradoxo visível: do seu lado da calçada impera o quintal verde que habita na memória, no coração e na imaginação dos granjeiros. Do outro lado, se ergue um impressionante edifício de 17 andares! Sim, você leu 17. Neste bate-papo informal, o professor titular da USP, aposentado há dez anos, resgata memórias, faz afiadas reflexões, conta do projeto do Parque da Aldeia que deve se transformar em realidade em cerca de três anos e surpreende, no quesito urbanismo, ao propor deixarmos a nostalgia de lado e acolhermos o inexorável processo de urbanismo.
Este tempo chuvoso é bem adequado para ler, não é?
Pois é. Ao longo da carreira, fui juntando livros e não tinha tempo de ler. Nestes últimos dez anos, contudo, estou aproveitando para lê-los [ele se levanta e mostra o teto do grande anexo em frente ao escritório, revelando que ali fica sua biblioteca]. Está sendo uma nova experiência. Gosto do Vicente Ferreira da Silva (1916-1963, filósofo brasileiro pioneiro em lógica contemporânea e em trabalhos sobre a fenomenologia no Brasil), um heideggeriano. Na época, era uma coisa muito atual trabalhar com Heidegger. Ele sai da lógica matemática. Tem um texto bonito sobre o Milton Vargas, que foi um professor importante da Poli [A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, unidade da Universidade de São Paulo que ministra cursos de engenharia]. Estou muito empolgado com a visão dele sobre relação humana na questão da transcendência. Ele era casado com a poetisa Dora Ferreira da Silva e morreu cedo, por acidente de automóvel com 47 anos.

O senhor estudou na Universidade de São Paulo?
Sim, fiz graduação em arquitetura de 1961 a 1967. Peguei o período quente do Jânio Goulart, fiz muita política universitária. Era companheiro do Zé Serra, que então estava na Poli. Com o golpe, fiquei quietinho, senão teria de ir embora para o Chile. Acabei entrando como professor num concurso na universidade não porque eu achasse importante, mas porque resolvi ser professor de projetos de arquitetura. Entrei em 1971 e fiquei 40 anos.
O senhor não foi o primeiro professor da USP de sua família, certo?
Meu pai, Paulo Sawaya (1903-2003), foi um dos pioneiros da USP quando a universidade foi fundada em 1934. Ele era médico, foi professor de fisiologia, chegando a diretor do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da USP, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Foram sempre os maiores interesses da vida de papai. Vivíamos impregnados dessa coisa viva, vivíssima, lá em casa: livros, conversas, personalidades significativas na área. Haviam também as viagens longas e repetidas a São Sebastião, que foi nosso paraíso particular, onde nos sentíamos pesquisadores e curiosos de todas as coisas da natureza, particularmente dos animais marinhos. Era um ambiente de pesquisa, ensino, conhecimento e vida, cordial e interessantíssimo. Nós o acompanhávamos nas férias, na casinha que tinha lá em São Sebastião.
O que ficou desta experiência para o senhor?
A forma dos bichos, que é maravilhosa e muito importante. Na arquitetura, você tem a possibilidade curiosa de ser empreendedor, de fazer coisas. E aí tem de lutar, tem de ter cliente, brigar com os outros. Ou então pode praticar arquitetura e ficar mais ligado à questão da forma e da expressão, que é meu caso. A ligação não é de um escritório produtivo, mas é a da arte. Para mim, a arquitetura é uma forma de poesia. Fazer uma casinha como esta, nas quais as expressões criam um ser, um espírito. Que pode agradar ou não. E este foi sempre meu trabalho com arquitetura, conseguir criar algo que fosse significativo para as pessoas.
A USP segue sendo uma referência na região, certo?
Meu pai tinha essa visão quase que religiosa da universidade. Para mim foi muito curioso, pois quando chegou minha vez de ir galgando os postos lá, aquela noção de universidade que eu vivi na infância não existia mais. Aquela ideia do centro da cultura e do saber do povo se esvaiu um pouco. É importantíssima até hoje, sim, tem uma quantidade de gente muito boa. Mas o espírito universitário se transformou. É uma universidade que nasceu para a ciência. E a arte é um conhecimento indireto, é a fantasia, então a FAU é uma das primeiras faculdades em que a questão da arte se coloca. Depois vem a ECA. Ambas ficaram marcadas por este conhecimento dito científico. E a questão da arte mesmo, propriamente dita, pelo menos na época em que eu estava lá, ficava subentendida.
Porque a arte é importante?
Meu pensamento sempre foi este de trabalhar com a imaginação como elemento fundamental. Para a visão científica, a imaginação é um pecado. Minha impressão é que falta uma maioridade para a USP. Eu tenho um sonho: abrir um campus da USP em Macau [uma região autônoma na costa sul da China continental]. Eu andei por lá e foi curioso porque existe ao mesmo tempo que São Paulo, é de 1557, só que foi território português até 1999. Era um centro comercial, onde se falava chinês. Mas ficou português por quase 500 anos. E hoje, trabalhando com a ideia da expansão da língua, fica para mim muito clara a importância de se ter uma relação cultural com Macau, que tende a se perder.

O senhor segue criando. Como está o projeto do Parque da Aldeia de Carapicuíba?
Há 40 anos trabalho com a Aldeia de Carapicuíba, que é de 1580 [A fim de catequizar os índios e protegê-los da escravidão de bandeirantes, como os liderados por Antonio Raposo Tavares, os jesuítas construíram doze aldeias em volta do Mosteiro de São Bento]. Mas a ocupação daquele núcleo era anterior, porque já era um aldeamento indígena. A gente tem de recuperar a história desta presença indígena. O importante é que se trata de um contato de brancos com índios localizado há 500 anos, e que o espaço se mantém, vai evoluindo neste tempo todo. A aldeia foi reconhecida como patrimônio nacional em 1938 pelo Mário de Andrade, quando foi feita a restauração dela.
Tinha um restaurante lendário ali, o Don Fernando de La Peña.
Sim, eram chilenos expatriados. Fechou. O secretário de cultura pediu para fazermos a acessibilidade para a igreja. Fiz este projeto, que foi ampliando e a gente acabou propondo o Parque da Aldeia. Trata-se de uma área que existe desde 1993, quando o prefeito de então desapropriou a área. Agora ela vai se transformar num parque estruturado. Tem mais de 300 mil metros, ficará maior do que o Teresa Maia [em Cotia]. Porque juntou a área da aldeia com a do sanatório Morumbi, que depois ficou a cargo da prefeitura. A arquiteta Lucia Hashizume, minha esposa, é quem está responsável pelo projeto. É interessantíssimo, tem uma área esportiva, uma área cultural com uma arena para 3 mil pessoas. Vão fazer agora a cobertura do palco. Tem também a área histórica. Na proposta atual a gente criou um invólucro sutil, que valoriza a parte histórica. E tem o antigo sanatório, com suas várias construções. Tem uma mata, um vale com riozinho, é tudo muito bonito. Eu acho que a gente vai conseguir ligar com a questão da relação do branco com o índio neste espaço natural. O governo do Estado deu 17 milhões para o projeto. A ideia é a do parque ficar pronto na gestão deste prefeito, que tem mais três anos.
Esta experiência do Parque da Aldeia é muito importante.
Sim, trata-se da única aldeia indígena jesuítica preservada integralmente. As outras estão em pedaços. Pinheiros era um loteamento, agora só tem o lugar da igreja. Itapecerica da Serra, Guararema, Embu – esta está um pouco mais preservada. A nossa, de Carapicuíba, é muito delicada devido às construções de taipa de pau a pique. Graças à intervenção dos anos 1940 permanece. E agora com o parque vai se criar uma valorização disto e, ao mesmo tempo, uma proteção. Eu acredito que a aldeia vai ter um papel significativo neste momento em que a recuperação da memória do negro e do índio na nossa cultura está em pauta, que a cada dia se percebe mais a importância disto.
O senhor mora aqui há mais de 50 anos.
Viemos para cá na década de 1969, 1970. Fui e voltei várias vezes. Aqui era um loteamento de chácaras, com terrenos de 5 mil metros, do Fernando Nobre, que era o dono do cartório. Chamava Chácaras do Refúgio, ainda é o nome. Quando viemos, não tinha nada. A primeira casinha foi a do lado, pequeninha, depois cresceu. Aos poucos, foi vindo gente que gostava de verde. O João Papaterra, um psicólogo, chegou com o pai dele. O fato de sair de São Paulo e vir para uma região de natureza, para uma paisagem sossegada, pesava muito. Com minha primeira esposa, fomos construindo aos poucos a Casa Redonda. Quando nos separamos, ela ficou com a casa, que é redonda mesmo, um cilindro, e virou uma escola e a sua marca. Curioso porque [na arquitetura] ficou tudo retilíneo e o curvilíneo se perdeu, então a experiência do elemento redondo é muito atraente por causa disto.
E por falar em mobilidade, como era vir para a Granja nos na década de 1970?
Nos anos 1970, a Raposo era uma pista só. E tinha lindos eucaliptos em volta, era sombreada. Depois, asfaltaram e fizeram a pista dupla. A Politécnica é um projeto interessante, era um anel viário que iria até a Regis Bittencourt, mas parou ali na Raposo. Era normal morar aqui e trabalhar em São Paulo. Hoje é mais difícil, isto virou outra área urbana. As coisas se resolvem por aqui mesmo. Na Granja, naquela época eram terrenos grandes e casonas. E agora estas casas são desproporcionais, ninguém mais quer mais morar nelas. Há uma leva de gente que vem morar em casas pequenas. Estas casonas tendem a virar condomínios ou o que seja. Ou serem divididas também. É gozado que o pessoal que veio para a Granja nesta época fala que temos de manter o espírito da Granja, que é algo que já passou. Essa pretensão de ser uma comunidade de elite já foi. A periferia encostou. E a Granja mesmo virou um centro muito ativo, comercial. Este jeito de ser granjeiro, classe média alta, tende a mudar, passando a ser uma vida em espaço livre aberto, mas muito urbana. Não é mais esta questão do campo. O verde é o verde do terreno. Na pandemia teve gente que voltou para cá, por poder trabalhar em casa, então isso dá uma força para a Granja para criar uma nova maneira de ser.

A Granja não para de crescer?
Tem de pensar na cidade que se expandiu horizontalmente e foi melhorando as construções. Então, começa a ter processo de substituição de casinhas térreas para dois pavimentos, depois surgem os predinhos de quatro andares. O movimento de adensamento na periferia tem ocorrência de edifícios para todo canto. Tem aqui, tem na Vila Dirce. É um processo de aumentar a densidade de ocupação. Isso causa uma melhoria dos bairros neste sentido. Não quer dizer que a população inicial permaneceu. Mas de qualquer forma o nível [de moradia] melhora.
Este crescimento não tem um lado cruel?
É cruel porque não existe um desenho interessante da cidade. Como este prédio de 17 andares aqui, que tem 4 vezes a área do terreno. E pelo plano diretor não podia ter esta altura de edifício aqui. Existe um plano diretor em Carapicuíba, mas está desatualizado e não foi feito interpretando a dinâmica da ocupação. Carapicuíba era um município todo construído com casinhas baixinhas que está em processo de substituição e verticalização. O sistema viário é local, tem uma via importante que é a Inocêncio Seráfico. De fato, o trabalho que vemos do plano diretor deveria ter quatro ou cinco vias paralelas que sairiam do Rio Tietê e viriam até a Regis Bittencourt. E estas vias seriam cortadas por outras quatro ou cinco perpendiculares. Com isto, conseguiria ordenar a circulação, que foi feita para casas pequenas, e poderia dar um desenho urbano melhor ao criar um sistema viário de vias locais, vias de ligação e vias de atravessamento.
A cidade é uma ocupação que amontoa um monte de gente e atividades, começa pequena e vai crescendo?
Sim, é preciso pensar a cidade como um espaço abstrato construído pelo ser humano. Ela tem uma dinâmica que ultrapassa de longe os planos. E como não se previu o que ia acontecer, estas ondas de transformação vão se dando sobre o que foi feito inicialmente, tentando melhorar, mas o resultado é precário. Como se fosse possível controlar isto… A expansão da cidade tem uma energia, uma força, tem de tentar reconhecer e acompanhar para ver o que faz.

Então a urbanização não é um processo controlável?
Esta fantasia vem da polis grega. A partir da Idade Média, começa o processo de reurbanização europeia, quando se cria a ideia de que a cidade traz a liberdade, porque naquela época de fato ela trazia. O servo da gleba que fugia para a cidade se tornava um artesão. Depois, a cidade sofre muitos impactos, tem as renascentistas, as barrocas, que vão ter planos bonitos para certas áreas. Mas, no século 19, com a industrialização, nascem as cidades operárias. E os núcleos urbanos passam a atrair as pessoas, hoje 80% delas estão morando em cidades. É um acúmulo de gente brutal, numa dinâmica que é difícil de controlar. Você tem tudo, tem acesso as coisas que se quer, às universidades, mas é sofrido. Esta história de querer sair para o verde, portanto, é explicável.
Então a cara da Granja mudará?
Estas coisas se transformam com o tempo. Fiz várias casas e dá para acompanhar bem o processo. Para um cliente que já faleceu, fiz uma casa grandona num terreno de 6 mil metros ali no Santa Lúcia, Fazendinha. A primeira esposa morreu, a casa ficou com os filhos. Ele fez uma segunda. A primeira era grandona, mas a segunda já era muito mais contida. E aí a gente fez uma ultracondensada, que tem 150 metros. E dá para viver muito bem nela. Esta experiência de ter feito projeto nestes 40 anos mostra que eles vão mudando muito em função da demanda.

Como será a Granja em 2050?
Um local de condomínios, que já estarão velhos, e um local verticalizado. Ela vai desenvolver um centro mais elaborado que o da Raposo, que é muito acanhado, não foi feito nem para a dimensão da época que aconteceu. Tem uma ligação que está sendo feita paralela ao Rodoanel que prenuncia a ligação da Raposo com a Regis. O Rodoanel já é um pouco isto. Daqui a 50 anos a cidade vai ter um centro organizado aqui na Granja e este centro deve se vincular a alguma coisa na Regis. E aqui vai ser um bairro tipo Pinheiros, via Leopoldina.
Por Monica Martinez