Crianças na era digital

Repensando o pacto entre smartphones, redes sociais e comunidade

Há pouco mais de uma década, muitos de nós entregamos, sem saber, uma nova infância às nossas crianças. Smartphones e tablets entraram nas casas como promessa de conveniência e segurança: mapas à mão, fotos instantâneas, mensagens com os pais. Não vimos, então, a extensão do experimento coletivo que estava começando — e nem tínhamos como prever. Hoje, com a experiência acumulada e um corpo de evidências crescente, já sabemos o suficiente para agir com prudência enquanto a ciência avança.

O psicólogo social Jonathan Haidt, em seu livro mais recente, “A Geração Ansiosa”, reúne anos de pesquisas e dados para argumentar que a combinação de smartphones, redes sociais e acesso irrestrito à internet na infância e adolescência provocou uma mudança estrutural na forma como jovens crescem e se relacionam. Haidt descreve esse fenômeno como “a grande reconfiguração da infância”: a troca de experiências presenciais e brincadeiras livres por um cotidiano mediado por telas e algoritmos.

Ele decidiu se aprofundar nesse tema ao observar, ainda nos anos 2010, um aumento repentino e consistente nos indicadores de ansiedade, depressão e automutilação entre adolescentes — especialmente meninas — nos Estados Unidos e em outros países. Para ele, a coincidência entre essa escalada e a popularização dos smartphones com redes sociais não era um simples acaso, mas um sinal de que estávamos diante de uma transformação com impactos profundos e duradouros.

Um novo tipo de problema social

Historicamente, quando novas tecnologias ou produtos de consumo apresentam riscos à saúde ou ao desenvolvimento, a sociedade responde com políticas de proteção. Foi assim com o trabalho infantil, com a regulamentação da publicidade de cigarros e bebidas alcoólicas, com a classificação indicativa de filmes e videogames. O ponto comum é que houve um reconhecimento de que certas experiências, embora possíveis, não deveriam ser oferecidas indiscriminadamente a crianças e adolescentes.

Hoje, os smartphones e redes sociais representam um desafio semelhante — mas mais complexo. A indústria digital não vende um produto físico e facilmente mensurável; ela oferece experiências infinitas, moldadas por algoritmos que aprendem sobre cada usuário. É como colocar uma criança diante de uma máquina que, 24 horas por dia, adapta-se para maximizar a atenção dela, explorando vulnerabilidades cognitivas e emocionais.

O que, afinal, é o “perigo digital”?

É uma combinação de mecanismos previsíveis:

⦁ Algoritmos de recomendação
Desmistificando: um algoritmo é um conjunto de instruções que prevê a probabilidade de você clicar/assistir/voltar e ordena conteúdos pelo “score” previsto. Na prática, modelos aprendem, com seus sinais (toques, pausas, curtidas, tempo de exibição), o que mais te prende — e empilham isso no topo do feed. Trabalhos técnicos clássicos já descrevem essa lógica (predição + ranqueamento, treinada com bilhões de interações). Blogs oficiais explicam que o feed é personalizado com base no seu comportamento recente, em sinais do conteúdo e da sua rede. O objetivo de negócio (tempo, retenção, anúncios) integra o sistema. Isso não é “mágica”; é estatística aplicada à atenção.⦁ ⦁ cyber.fsi.stanford.edu⦁ siepr.stanford.edu

⦁ Portas escancaradas a conteúdos que a infância não deveria ver
A internet abriga desde o melhor da humanidade até o que simplesmente não deveríamos normalizar. Sem preparo, crianças podem ser expostas a material inadequado (violência explícita, sexualização precoce, autolesão), contatos predatórios e esquemas de manipulação. Reguladores começam a reagir: o Reino Unido ampliou responsabilização de plataformas para mitigarem riscos a menores (p.ex., Online Safety Act e guias escolares); os EUA endureceram fiscalizações de privacidade infantil (casos YouTube/COPPA, TikTok/ICO, Instagram/DPC Irlanda) — respostas ainda insuficientes, mas que reconhecem o dano potencial.⦁

⦁ Mecanismos neurocognitivos em janelas sensíveis
Durante a adolescência, sistemas de recompensa amadurecem antes dos circuitos de controle inibitório no córtex pré-frontal. Em bom português: o cérebro está mais responsivo a novidades, pares e recompensas rápidas, enquanto o “freio” executivo ainda se consolida. Isso torna notificações intermitentes, feeds infinitos e recompensas sociais variáveis especialmente potentes. Some-se sono encurtado (uso noturno, luz, excitação cognitiva), e os efeitos aparecem no dia seguinte: atenção fragmentada, humor mais instável, pior consolidação de memória. Evidências populacionais ligam uso noturno com menos horas de sono e pior desfecho escolar, embora o tamanho de efeito varie e parte do problema seja “deslocamento” de tempo mesmo.

Escola e políticas públicas: alinhando os adultos da aldeia

A escola é, por natureza, o lugar do comum. Não surpreende que países tenham começado pela sala de aula. A França restringiu celulares do ensino fundamental ao médio-I (2018); o Reino Unido publicou, em 2024, orientação nacional pedindo proibição de celulares durante todo o período escolar; a Holanda adotou restrição semelhante em 2024. O Brasil sancionou lei federal em janeiro de 2025 restringindo celulares em escolas públicas e privadas, com exceções pedagógicas e de acessibilidade — consolidando iniciativas já existentes em estados e municípios e sinalizando, com clareza, que a escola pertence à conversa, ao foco e ao recreio sem telas.

Na Austrália, além de proibições de celulares nas escolas estaduais (já amplamente adotadas), o Parlamento aprovou em 2025 uma lei nacional proibindo redes sociais para menores de 16 anos e estabelecendo mecanismos de verificação etária e multas a plataformas — uma experiência regulatória acompanhada de perto pelo resto do mundo.
Apesar das evidências já reunidas, ainda existem lacunas científicas — como a falta de ensaios clínicos randomizados sobre o efeito da proibição de celulares nas escolas. No entanto, nesses vários países que adotaram restrições, observou-se melhora no clima escolar, redução de bullying e, em alguns casos, ganhos acadêmicos e de saúde mental.
O princípio da precaução defende que, diante de riscos plausíveis e potencialmente graves, é melhor agir preventivamente do que esperar provas definitivas — especialmente quando o custo de inação pode ser alto. Suspender ou limitar o uso de smartphones entre crianças e adolescentes não é uma medida definitiva ou irreversível, mas pode evitar prejuízos significativos enquanto a ciência avança.

Movimento Desconecta: uma proposta brasileira para formar uma geração mais livre e consciente

O Movimento Desconecta nasce dessa compreensão: sozinhos não dá. É um movimento de pais para pais, gratuito, voluntário, apartidário, laico. A metodologia baseia-se em experiências internacionais (Wait Until 8th e Smartphone Free Childhood) e na prática de escolas brasileiras que já implantaram o processo. O foco é construir consenso e mudar a norma:

• acordo coletivo para postergar smartphones até pelo menos 14 e redes sociais até 16;
• versão “acordo parcial” para quem já deu o aparelho;
• materiais para letramento digital;
• diálogo sem julgamento e sem pressa por assinaturas — compromisso sério, de longo prazo.

Letramento digital: a vacina antes da exposição

Postergar a entrada nas redes sociais é apenas uma parte do caminho. A outra é educar. O letramento digital envolve ensinar não apenas a “usar” tecnologia, mas a compreender como ela funciona, quais são seus riscos e como manter autonomia diante de estímulos pensados para manipular atenção e emoção.

Pesquisas indicam que crianças cujos pais têm regras claras e coerentes sobre o uso de tecnologia apresentam melhor autorregulação e menor risco de uso problemático. Mas, para que essas regras sejam eficazes, é preciso reduzir a pressão social — e aí entram iniciativas coletivas.

Pergunta final

Estamos, como sociedade, diante de uma encruzilhada. A primeira geração a atravessar a adolescência imersa no mundo das redes sociais já mostra sinais preocupantes: aumento de transtornos de humor, queda no desempenho acadêmico, polarização social e redução de habilidades socioemocionais. Se nada for feito, corremos o risco de consolidar um padrão em que a infância é abreviada, a atenção é fragmentada e a identidade é moldada por métricas de curtidas e seguidores. Adiar a entrega de tablets e smartphones para crianças e adolescentes não é uma cruzada contra a tecnologia — é uma estratégia para preservar algo que não pode ser recuperado: a infância e a adolescência. Essas fases são breves, mas decisivas, moldando o cérebro, as emoções e as relações para toda a vida.

Introduzir telas conectadas cedo demais pode roubar tempo de brincar, de explorar o mundo real e de desenvolver atenção plena. Ao postergar o acesso, damos espaço para que habilidades sociais, cognitivas e emocionais floresçam sem a pressão constante de notificações e comparações virtuais. É, em última análise, uma forma de salvar não apenas esta geração, mas de construir adultos mais saudáveis e preparados para lidar com o mundo digital de forma crítica e equilibrada .Diante de tudo isso — ciência em progresso, políticas apontando para a proteção, escola como aliada e uma comunidade disposta a coordenar — a resposta pragmática é “sim”: é possível mudar o curso sem demonizar tecnologia nem polarizar famílias. A pergunta que fica para cada um de nós é:
Topamos construir, juntos, uma nova norma que devolva tempo, sono, foco e laços presenciais à infância — e que prepare melhor a geração que vem? Se a resposta for “sim”, o Movimento Desconecta está aí para apoiar pais e mães a iniciarem esse diálogo nas comunidades.

Esta matéria foi escrita por Kita Flórido com o apoio do Colégio Sidarta e contou com a colaboração do Movimento Desconecta e de Luca Louzada ( ex aluno do Colégio Sidarta) Graduado em Ciências Econômicas pela USP, mestre pelo MIT e research fellow na Universidade de Stanford , onde pesquisa Politicas de Smartphones em Escolas.

Serviço:

Site: http://www.movimentodesconecta.com.br
Instagram: http://www.instagram.com/movimento.desconecta
Biblioteca de conteúdos: https://padlet.com/movdesconecta/biblioteca-movimento-desconecta-ialuhbuv1g3cytnn

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