Doméstica teve sua história publicada em livro por sua ex-patroa

Maria Etma, doméstica que veio do Piauí para Cotia; Renata Kotscho, ex-patroa de Etma que na época morava na Granja Viana. A relação de patroa e empregada que durou 12 anos e resultou na publicação de um livro. Sofrimento, lutas e dificuldades de um lado; sensibilidade, altruísmo e solidariedade do outro. Confira reportagem da Circuito sobre essa história

Às vezes, ouvimos de outras pessoas: ‘nossa, na sua vida já aconteceu tanta coisa, que daria até um livro’. E isso, de fato, aconteceu com Maria Etma, doméstica, piauiense e que mora em Cotia desde a década de 1990.
Sua história é marcada por sofrimento, dificuldades, lutas e conquistas. Foram tantos desafios enfrentados e superados, que sensibilizou Renata Kotscho Velloso, ex-patroa de Etma que publicou, no ano passado, o livro ‘Dezessete Anos’, com narrativas sobre a vida dela.
A reportagem da Circuito foi até a casa de Etma, no Jardim Nova Cotia, para conhecer melhor a sua história. Ela nos atendeu na residência de sua irmã, que fica ao lado. Uma conversa rápida, de 30 minutos, não foi o suficiente para ouvir todos os detalhes, mas o bastante para entender os motivos de Renata para compor a sua biografia.
Infância e vida profissional  
No sertão do Piauí, Etma teve uma infância com bastante dificuldade financeira. Mesmo sendo um lugar precário e com poucos recursos, ela considera que, apesar das adversidades, foi uma pessoa feliz.
Por um bom período de sua vida, Etma foi criada por sua avó. Casou-se cedo, aos 17 anos, idade que veio morar em Cotia.
Em busca de oportunidades e já com um filho de cinco anos, foi na Granja Viana que Etma começou a sua vida profissional. Ela trabalhou como doméstica na casa de uma senhora chamada Marlene. Mas não levou muito tempo até conhecer Renata, que também morava na Granja.
“Surgiu a Renata. Foi o meu segundo emprego. Em uma das casas que eu morava, tinha uma mulher que trabalhava na casa da mãe dela e que disse que a Renata precisaria de uma pessoa. Mas eu disse que não, porque senão ia ficar longe para a gente. Aí eu indiquei a minha prima. Ela ficou lá por um período, mas teve que ir para o Piauí e perguntou se eu queria ficar na Renata, que morava em uma chácara, na Granja Viana. Fiquei com ela por 12 anos”, relembra.
Renata
Hoje, Renata mora na Califórnia (EUA), e mantém contato com Etma por meio da internet. A Circuito falou com ela pelo WhatsApp para saber mais de sua relação nesses 12 anos com sua ex-funcionária. Nesse período em que conviveram juntas, o que mais chamou a atenção em Renata foi a determinação de Etma.

Renata Kotscho, ex-patroa de Etma. Foto: Arquivo pessoal

Renata conta que sua ex-funcionária passou por dificuldades de saúde com o filho Lupércio, porém, nunca desistiu de lutar pela vida dele. Na época com 13 anos, o menino apresentou um quadro de insuficiência renal crônica, fato que levou Etma a enfrentar todo o sistema público de saúde.
“Ela enfrentou praticamente sozinha todas as dificuldades. Ela me ensinou isso, de você correr atrás do que é seu, do que você merece, dos seus direitos. Ela é fantástica nesse ponto”, diz Renata.
E, realmente, não foram dias fáceis para ela. Com um dos rins comprometidos, Lupércio precisou de um transplante. “Foi quando começou meu desespero, a minha luta. Fiquei perdida, porque não sabia o que fazer. Ele foi encaminhado para o Hospital de Cotia e ficou lá até ser diagnosticado com esse problema de saúde”, rememora Etma.
De Cotia, o menino foi transferido para um hospital em São Paulo. O rim de seu marido era compatível com o dele, fazendo com que o transplante fosse realizado com sucesso. Porém, o alívio durou apenas seis anos, pois seu filho perdeu o rim novamente e, até hoje, faz hemodiálise.
Apoio
Na época em que surgiu o problema de saúde com o seu filho, Etma precisava de tempo para correr para lá e para cá com ele. Foi quando conversou com sua ex-patroa, que atendeu seu pedido com prontidão.
Antes de descobrir o problema com Lupércio, Etma havia comprado um terreno – onde hoje ela mora – com um dinheiro que Renata a emprestou. Mas a ex-patroa de Etma se sensibilizou mais uma vez, e deu baixa na carteira de sua ex-funcionária, para que ela tivesse mais tempo de cuidar de seu filho.

Questionada sobre o dinheiro do terreno, Etma respondeu que Renata apenas disse que ela poderia pagar quando pudesse e que era para ela trabalhar pelo menos aos finais de semana, para não ficar sem dinheiro.
A maior perda
Durante a entrevista, tiveram dois momentos em que Etma se emocionou muito. E, esses dois momentos, foram quando ela relembrou de sua avó. Com lágrimas nos olhos, Etma relembra que já estava se preparando para vê-la, 17 anos depois, quando recebeu a notícia que ela havia falecido.
Já no Piauí, Etma visitou os lugares onde viveu sua infância. Marcada por sentimentos e lembranças, ela se emocionou ao falar da casa onde sua avó morava.
“Quando passei por aquela casinha, no meio, e quando entrei nos quartos, olhei o fogão que minha avó cozinhava” […] após uma pausa de alguns segundos, ela conclui: “Você sofre tudo novamente. É a mesma coisa de você viver tudo novamente. É uma viagem que você faz dentro de si. Eu não tive a oportunidade de dizer a ela o quanto que eu a amava. O tanto que ela era importante para mim.”
O livro
Lançado em 2018, ‘Dezessete anos’ conta a trajetória de vida de Maria Etma. Escrito por Renata, que já estava na Califórnia, as duas se falaram pelo WhatsApp, numa espécie de entrevista que resultou na obra literária.
Renata conta que a ideia de escrever o livro foi por curiosidade em saber a história de Etma e de entender de onde ela tinha tirado forças para enfrentar os obstáculos que surgiram em sua vida.
Todo esse processo levou dois anos para ser concluído. Renata explica que, após ter todo o material obtido pelas conversas, não sabia ao certo o formato que o livro seria escrito.
“Li vários livros clássicos do Nordeste para conhecer um pouco mais a realidade de lá. Mas quando fui tentar escrever dessa maneira, eu achava que ficava falso, porque eu não tinha todo esse conhecimento, apesar dos áudios. Então, achei melhor deixar o mais fiel possível e fazer o livro em forma de diálogo, porque, no fundo, ele foi construído assim entre nós.”
Quando recebeu a proposta de sua ex-patroa para que sua história fosse publicada em um livro, Etma questionou o que sua vida tinha de tão diferente assim de outras. Quando, em sua casa, recebeu a obra de sua vida publicada, ela teve um outro olhar sobre o que aquilo poderia representar.
“A sensação em ter a minha história publicada em um livro é de imortalidade. Eu vou morrer, mas a minha história vai estar aqui. Alguém, ora ou outra, vai pegar e ler”, conta.
Quando começou a folhear o livro, sua primeira reação foi chorar. “Tive várias sensações. Mas, de uma forma ou de outra, vou passar minha experiência para outras pessoas que precisam.”
Para Renata, o objetivo principal do livro é de dar voz às mulheres que normalmente são silenciadas.  “As pessoas perguntam porque eu não fiz um livro contando a minha própria história, falando sobre as faculdades que estudei, que eu fiz medicina e hoje moro na Califórnia, etc. Mas as pessoas como eu já tem muita voz na sociedade, eu já sou ouvida. A Etma, não. As mulheres domésticas, as mulheres mais pobres, elas não têm muito essa oportunidade de se expressarem e de serem ouvidas, e elas merecem ser ouvidas como qualquer pessoa.”
 
Por José Rossi Neto

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