Quem é Kaneko?
(Risos, e responde com sotaque bem forte.) Um arteiro. Que gosta de fazer arte. (mais risadas) Meus amigos (os artistas) falam que sou um “grande sábio” ou “grande mestre”. Eu sou um artista solitário, mas com um monte de amigos em diversas partes do mundo. Aqui, neste bairro, conheço muita gente. Até o moleque na rua me conhece. Acho que sou isso: um homem bobo da arte. (risos)
 
Como você valoriza sua arte, já que raramente trabalha com galerias de arte?
Poucos artistas vivem da sua própria arte. Quanto você custa? (fala apontando o dedo) O meu quadro é meu filho, é um pedaço do meu corpo. Avaliar é chato, é difícil. Meu objetivo não é vender o quadro. É para mim, faço para mim.
 
Mas precisa vender, né? Para pagar contas, comer…
Às vezes, meu amigo vem e compra tudo. Outras vezes, eu dou de presente. Galerista vem aqui, leva e vende. Tenho que colocar o preço, mas não gosto. Queria dar tudo. É uma parte do meu corpo, dói muito.
 
É assim que você se sente? Como se tivesse levado uma parte sua?
Sim. Um pedaço de mim. Artista é simplesmente um operário. Todo artista famoso é arquiteto, já reparou?
 
Sim, tem muitos artistas arquitetos.
Então, ninguém acredita que arte dá dinheiro, então vai fazer arquitetura para tirar um diploma. Depois, vira artista. Pode reparar. Sempre fui artista. Desde pequeno, a professora falava para meus pais que eu seria artista. Tive sorte. Aos 14 anos, já fiz minha primeira exposição. (Para e pensa um pouco.) Veja que interessante. Por exemplo, quando conheci o Volpi (Alfredo Volpi, pintor ítalo-brasileiro considerado pela crítica como um dos artistas mais importantes da segunda geração do modernismo), ele era muito simples e fazia suas próprias molduras, sabia? Aí vinha o comprador, pagava um salário mínimo pelas obras e ele vendia. Vendia tudo. Esse colecionador ficou rico depois, pois comprou tudo muito barato. (Hoje, as obras de Alfredo Volpi ganharam um novo status, estão supervalorizadas e com preços astronômicos.) Quando eu morrer, Maya (filha dele com Mariko, ele tem mais três filhos com a primeira mulher no Japão, ambas falecidas), vai ficar rica. (solta gargalhadas)
 
É verdade que você teve que buscar um quadro vendido porque sua esposa não queria que você vendesse?
Nossa. É verdade. Isso aconteceu com minha primeira esposa, ainda no Japão. Ela amava um quadro que, certo dia, vendi, pois o comprador gostou muito. Ela chorava tanto, mas tanto, que tive que devolver o dinheiro e pedir o quadro de volta. Acredita?
 
Sim, acredito. E com Mariko, como foi?
Mariko era uma grande artista (falecida em 2015), pintava em tecidos e fazia muitas aquarelas, com seus abacaxis, desenhos que ela adorava fazer. Morreu muito cedo. Quem imaginava que ela iria antes de mim? Construímos juntos nossa casa aqui na Granja. Ela era de família muito boa. Muito triste ela ter partido tão jovem.
 
Você saberia dizer quantas obras já fez até hoje?
Muitas, muitas, mas não sei dizer quantas. Faço 400 obras por ano, mais que uma por dia. Sempre pinto. Tenho muita coisa para fazer ainda, pois estou vivo. Quase todos os dias, faço meu autorretrato.
 
Como você faz isso?
Olho no espelho e faço. (mostra vários desenhos dele em um livro-catálogo) É como se fosse um diário.
 
Seus quadros são muito coloridos, vibrantes, porém existem alguns pretos e brancos e outros bem escuros. Qual inspiração?
Eu tenho necessidade de cor. Quando estou triste, uso muito colorido, porque preciso de cor, preciso da alegria. Agora quando estou alegre, pinto preto e branco, ou só preto, pois aí não preciso cor. Eu sou assim. A gente trabalha com o sentimento.
 
Você sempre diz que as coisas aconteceram para você facilmente. Você sempre viveu de arte?
Sim, sempre vivi da minha arte. Quando cheguei ao Brasil, de navio, fomos todos trabalhar na roça. Na cana de açúcar, na cidade de Campinas, no interior de São Paulo. Lá, ganhava 3 cruzeiros por dia de trabalho, no sol quente e forte. E quando vendia um quadro, era por 30 cruzeiros. Já imaginou? Então a arte sempre me alimentou, pois também trocava por pratos de comida. Fazia autorretratos das pessoas e vendia. Fiquei dois anos na agricultura. Quando resolvi vir para São Paulo, mandei cinco quadros para a Bienal (Bienal Internacional), todos entraram e eu vendi tudo. Aí, pensei, posso viver da minha arte. Construí minha casa na Granja, graças ao meu trabalho artístico. Tenho casa própria e ainda trabalho muito.
 
E com comerciais de televisão, ganhou dinheiro?
Teve uma época que eu fazia vários por semana. Todo dia. Ganhava 50, 60 salários mínimos. Sempre era chamado. Saía de uma gravação, correndo para outra. Fiz muitos comerciais. Agora estou velho, né? Não chamam muito, não. (risos)
 
Quando saiu do Japão, você estava fugindo da guerra, assim como sua contemporânea, Shoko Suzuki. Você já imaginava o que encontraria por aqui?
Nesta época, 1960, todos estavam vindo para o Brasil. Eu já trabalhava com arte e tinha ouvido que havia muitos artistas bons no Brasil, terra promissora. E com a Bienal Internacional de Arte… era bom vir. E também era muito triste ver a guerra, as mortes no rio… Enfim, não imaginava que iria fazer tantos amigos como fiz, quando cheguei. Em primeiro lugar, morei em Campinas e somente depois de alguns anos viemos para São Paulo.
 
Direto para Granja Viana?
Não, ainda morei no Bosque da Saúde. Mas já sabia da comunidade daqui, pois conhecia muitos amigos artistas. Baravelli, Vlavianos (Luiz Baravelli e Nicolas Vlavianos são artistas renomados e ambos moradores da região) e também minha comadre Shoko Suzuki. Fazíamos vários encontros e queimas (queimadas de forno, muito famosas e requisitadas no ateliê da Shoko). Tínhamos um grupo muito forte, com Tomie Ohtake, Manabu Mabe. A gente vai se juntando e, quando vê, tá todo mundo junto.
 
Mas você escolheu viver aqui, ser naturalizado brasileiro porque achou que era promissor?
Vim para o Brasil porque vi que tinha Bienal Internacional de Arte (a terceira mais importante do mundo, depois de Veneza e Documenta). Se tem Bienal de Arte, tem espaço para trabalhar. Participei de duas: a 7ª e 9ª Bienais.
 
Como surgem as inspirações?
Na verdade, minhas obras nascem sozinhas. São as próprias obras de arte que me inspiram.
 
E por onde estão espalhadas as obras?
Tenho obras em todos os cantos do mundo. Estados Unidos, Europa, Cuba, Japão. Aqui tenho obras nos museus de arte contemporânea de São Paulo, Campinas, São Caetano. E muitas com colecionadores, até aqui na Granja.
 
Quais trabalhos já realizou na TV?
Participei de diversas novelas e minisséries, na TV Globo e em outras emissoras. Comecei na TV Bandeirantes fazendo Os Imigrantes, que foi um marco. Fiz também De Quina Pra Lua, Mundo da Lua, Metamorfoses, Cobras & Lagartos, Água na Boca, A Diarista, Morde e Assopra, entre muitos outros.
 
E filmes?
Fiz muitos. Em 1980, participei de Gaijin – Os Caminhos da Liberdade, da cineasta Tizuka Yamasaki, e esperei mais de 20 anos para fazer a segunda parte, muitos atores morreram. Neste intervalo, fiz muitos comerciais. Participei também de Eros, Deus do Amor, fui um guarda de prisão no filme O Beijo da Mulher Aranha (1985), outros como Sua Excelência o Candidato, Cristina Quer Casar e Corações Sujos.
 
Você fez muito sucesso com comercial dos “palitinhos”. Conte mais?
Fiz mais de duas dúzias sobre este mesmo assunto. Tinha mais de 200 japoneses fazendo teste. Eu precisava decorar, e não conseguia falar a frase certa que era: agora vamos ensinar para brasileiros como se come palitinhos… aí eu fui gravar, com todo mundo na sala, diretor, técnicos, e falei: agora vou ensinar para brasileiros como se come brasileiras… aí foi uma gargalhada e eu ganhei o papel. É difícil decorar. O diretor diz que foi o melhor filme da vida dele. (risos)
 
Você que já fez tanto cinema, televisão e é um grande pintor, com quais dessas formas de expressão você mais se identifica?
Com todas. Sou um multiartista. Não tenho preferência por uma forma de expressão ou trabalho artístico. Costumo dizer que gosto de tudo. Gosto de arte em todas as suas formas. Faço tudo isso porque não sei fazer outra coisa.
 
O que você acha de morar na Granja Viana?
Liberdade total. Na feira, encontro amigo milionário que vai de chinelo. Ninguém vê como a pessoa esta vestida. É um tipo de democracia, onde as pessoas não vêm concorrência. Mesmo que tenha assalto, violência, essas coisas, aqui ainda é melhor. Tem um tipo de tranquilidade e todos são amigos. Todo lugar precisa de atenção, claro. Meu amigo morreu no Rio de Janeiro, morando em lugar chique, dormindo, de bala perdida. Ou seja, melhor bairro, mas vive ao lado favela. Agora, a Granja Viana fica no meio do mato, cercado de verde. Acho aqui um oásis. Aos domingos, vou à EcoFeira ver meus amigos. Aqui dá para viver com calma.
 
Qual será o próximo passo? Tem novidades?
Vou fazer uma exposição individual no Centro Cultural dos Correios de São Paulo. Vai ser uma retrospectiva da minha trajetória. A abertura será em 4 abril e quero ver todos os meus amigos lá.
 
Solange Viana

Artigo anteriorTaxistas de Cotia recebem novos alvarás
Próximo artigoA cidade que mais cresce na região completa 163 anos