Militante entusiasmado da inclusão social por meio da música clássica, o maestro e pianista João Carlos Martins convoca os artistas da área musical a se manifestarem por mudanças no país, e embora rejeite falar de política, diz que não é possível se omitir “numa fase difícil como essa” pela qual passamos. Sua parte ele faz empenhado, em plena pandemia, em “fechar o Brasil em forma de coração”, um sonho que atribui a Villa-Lobos e que assumiu. Tenta realizá-lo atendendo a centenas de orquestras pelo país e erguendo projetos como a Fundação Bachiana e sua Bachiana Filarmônica Sesi-SP, que formam novos talentos da música erudita.

Foto: Fernando Mucci

Quem o vê trabalhando integralmente com música por todo o país não imagina os reveses que já enfrentou na carreira, com acidentes múltiplos (sendo os mais graves um braço perfurado durante uma partida de futebol, em 1965, e um violento golpe na cabeça durante um assalto em 1995) que quase o fizeram perder completamente os movimentos das mãos. Depois de 24 cirurgias nas mãos, nos braços e no cérebro, Martins deu a volta por cima como quem assobia um allegro: com limitações para tocar, buscou luvas biônicas e encontrou estratégia para malandramente “enganar o cérebro” e lidar eficientemente com uma distonia. E começou a reger. Sua militância é uma forma de agradecer a Deus pela oportunidade de nunca deixar sua vocação para a música.

Nesta entrevista à Circuito, o músico declara amor eterno à região da Granja Viana, onde promovia concertos e partidas de futebol inclusivas em sua casa, já na década de 1970, quando a desigualdade social ainda não estava em pauta, e diz que só não volta para o local por causa de suas atividades intensas em São Paulo. E ensina como cuidar do espírito pensando o país, e a cuidar do corpo com teimosia. A arte e os segredos de João Carlos agora são seus.

Foto: Fernando Mucci

Maestro, como alguém que já passou por tantos incidentes, cada um deles capaz de encerrar sua carreira, e dezenas de cirurgias, ainda se mantém ativo e trabalhando com o que sempre quis? Como superar tantos problemas?
Acho que meu caso não é de superação, é de teimosia. As pessoas nascem como uma flecha lançada, têm que atingir certo destino. Pode ter desvios, como eu, que tive erros e acertos na vida. Os erros procurei corrigir, os acertos aprimorar, e finalmente a flecha está em direção ao destino para o qual ela foi focada, e eu, no dia que completei 80 anos (em junho de 2020), anunciei meus projetos para os próximos 20 anos.

Mas como o senhor reagia aos diagnósticos médicos que indicavam que não poderia mais fazer música?
É preciso ter a capacidade de se adaptar ao contexto, assim como faz a medicina, e confiar que pode dar certo. Os médicos estão fazendo pesquisas, e até hoje não descobriram uma solução para a distonia, um problema que eu tenho (movimentos involuntários, como tiques). Fui operado no cérebro por um médico genial, o Paulo Niemeyer, e tive acesso a técnicas novas que vão surgindo. Para a distonia, por exemplo, há sempre formas de como você consegue driblar o cérebro. Segui o conselho de Voltaire, que dizia: me diga qual é a doença que eu sei qual é o remédio. Sabia que meu remédio para a distonia era ficar dormindo até dez minutos antes de uma apresentação em concerto, porque aí eu entrava para o palco como se fosse 7 horas da manhã, quando a distonia ainda não se manifesta. Aprendi a lidar com meu próprio corpo. São mais de 2 mil concertos nos quais sempre dormi até dez minutos antes da apresentação. Eu chego como se estivesse acabado de acordar, porque aí a distonia não aparece. E transformo a noite numa manhã, porque consigo dormir na hora que quero. E tem soluções paliativas. Agora estou com essas luvas biônicas, com as quais pelo menos posso encostar os dez dedos no teclado novamente, depois de 22 anos em que fiquei tocando com dois ou três dedos, porque nunca abandonei meu velho companheiro (o piano).

Adaptar-se não deve mesmo ser problema para o senhor, que já circulou por ambientes tão diferentes como os palcos glamorosos e o ringue de boxe; que transitou da extrema sensibilidade que é tocar Bach até o reme-reme da política…
Não, não transitei nesses ambientes. O que aconteceu foi o seguinte: eu, por duas vezes, por motivos de saúde, fui obrigado a paralisar meu ofício, que é a música, o piano. Isso me deu muita revolta, tanto é que com 29 anos cheguei a entrar numa banheira para tentar me suicidar.

Maestro ao piano, durante a live de seu aniversário de 80 anos

Como foi essa experiência?
Nesse momento, eu já tinha tido o acidente (perfuração de um braço durante um jogo de futebol) e feito a primeira operação, com uma lesão profunda no nervo ulnar, já tinha tido atrofia na mão direita, estava usando dedeira de aço e tive pela primeira vez uma crítica ruim do New York Times. E o crítico estava certo, porque a missão de um pianista é perfeccionismo e emoção. Emoção ainda tenho, mas perfeccionismo não. Então, falei para meu empresário: acabou aqui. Mas voltei sete anos depois de uma forma melhor do que eu estava.

Foi nessa época que surgiu o boxe?
Então, era tão grande a revolta de não poder continuar meu ofício, que considero uma missão, a música, que eu quis ir para um ramo totalmente oposto, para não pensar em música, e acabei sendo empresário do Eder Jofre (único pugilista brasileiro campeão mundial por duas vezes). Encontrei com ele no prédio do apartamento do meu pai, e falei que ele tinha que recuperar o título, eu o encorajei a isso, e que se ele estivesse disposto, seria seu empresário. No dia seguinte, ele me ligou e falou que, apesar dos 37 anos, ia começar a treinar. Um ano e meio depois, em 1973, era campeão mundial novamente. Aí quando ele conquistou o título mundial pela segunda vez, vencendo também os que não acreditavam nele, aquele momento também foi para mim o motivo para que eu me esforçasse ao máximo, com operações e fisioterapia, a retomar meu ofício. O boxe me ajudou a retornar para a música. Depois de muitas fases e trabalhos diferentes, fui gravar toda a obra de Bach para o teclado etc. Em 1993, voltei definitivamente para a música. E esses últimos 28 anos, certamente, têm sido os melhores anos da minha vida, apesar de 24 cirurgias.

Como o senhor conseguiu se encontrar num mundo tão diferente como a promoção de lutas?
Quando me dedico a alguma coisa, vou de corpo e alma. Então eu me dediquei à organização daquela luta, fui para o México, fui para a Espanha, a fim de conseguir realizar a luta em Brasília, e reuni dois experts, um em show business, que era o Marcos Lázaro, e um no boxe, chamava Abraham Katznelson. Falei para eles: vocês estão aqui para realizar meu sonho, que é ver o Eder Jofre recuperar o título mundial. Deu certo.

E sua participação na política?
Nunca participei das ações políticas. A única coisa que fiz e me arrependo na minha vida é de, durante dois anos, ter participado de uma campanha política, que é um cadáver que vou ter enterrado no meu peito até o fim da minha vida, e que me recuso a falar nesse assunto.

Como o senhor vê o momento atual da política brasileira e a gestão da cultura no país?
Avalio que a gente passa por fases gregas e romanas na história. Na fase grega, as artes imperam. Nas fases romanas, o materialismo. Estamos passando por uma fase difícil. Eu, há 30 anos, não falo mais de política, não toco mais nessa palavra, mas quando estamos numa fase difícil como essa, o importante é a velha frase do Kennedy: não é o que o país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo país. Se todos os artistas, pelo menos os músicos, no meu caso os da música clássica, saíssem das torres de marfim e fossem ao encontro de todos os segmentos da sociedade, nada impedirá que se rume para algo melhor, porque haverá repercussão na sociedade. Só para você ter uma ideia: um vídeo que postei no Instagram tocando Bach, deu 33 milhões de visualizações no mundo inteiro, e nas nossas lives estamos próximos de 2 milhões de visualizações, e não foram tantas lives assim.

Usar a força da imagem do artista para melhorar o mundo?
Sim. Eu me inspiro em muitas pessoas e procuro inspirar muitas pessoas também, é uma relação de ida e volta. Veja, hoje, se passo por um aeroporto, quantas pessoas vêm emocionadas, às vezes até chorando e dizendo, olha, eu tive um câncer, mas ao ver sua superação, acabei enfrentando minha doença. Isso que estou lhe contando, fatos assim, aconteceram centenas de vezes nos últimos 15 anos, quando passei a ter mais projeção na imprensa. Essa força tem que ser usada para algo bom.

Há 26 anos, o senhor se tornou um militante pela inclusão social. O que houve para provocar isso?
Foi quando comecei a pensar a carreira de maestro. Comecei realmente a ter um projeto. Como pianista, eu era um braço que se fechava sobre o piano. Como maestro, abri a mão. A única forma de agradecer a Deus por continuar na música por meio da regência era assumir uma responsabilidade social. Sempre me baseio, e vou repetir aqui, a famosa frase do Kennedy: não espere o que um país possa fazer por você, mas faça o que você pode pelo país. Dentro do meu pequeno universo, tenho feito minha pequena contribuição procurando realizar o sonho do Villa-Lobos, que era fechar o Brasil em forma de coração por meio da música. E graças à exposição na mídia, hoje saio na rua e qualquer pessoa fala “ô maestro”. Penso que essa fama deve ser usada a favor desse sonho. E estamos tentando. Hoje, já criei algumas orquestras e, além disso, tenho cerca de 500 orquestras parceiras, do Rio Grande do Sul a Roraima, e posso lhe dizer que é pura emoção cada vez que surge um projeto. Por exemplo, em Suzano, meu projeto é com uma escola que fica perto daquela onde houve recentemente um atentado contra estudantes. Lá, trabalho com uma orquestra de jovens, cujos alunos que participam acabaram ficando melhores nas outras disciplinas da escola. Hoje, trabalho com a Fundação Bachiana, que faz projetos em vários lugares do Brasil. Sou celetista da fundação. A Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP é um desses projetos, a única orquestra privada com seu perfil na América Latina.

O que é uma orquestra parceira?
É um projeto chamado Orquestrando São Paulo, Orquestrando o Brasil. Mantenho contato com os maestros, tem um curso para alunos com mais de mil diplomas emitidos sobre as boas práticas da regência. As orquestras mandam para mim ensaios e analiso devolvendo meu comentário. É um tipo de consultoria que corre o Brasil inteiro.

É fácil ou difícil descobrir novos talentos?
É possível, sim. Quando vou para qualquer lugar menos privilegiado, divido as crianças em quatro grupos. Os que podem fazer parte de um público, os que poderão ter a música como um hobby, os que poderão ser profissionais e os que são um diamante a ser lapidado. Essa é a divisão que faço com meus professores. Funciona. Já lancei menino de 11 anos em Nova York tocando Vivaldi. Acho que estou cumprindo minha missão.

Como é sua militância na área da saúde?
Agora iniciei uma campanha sobre a distonia, que é uma doença contra a qual luto há décadas, sou uma pessoa distônica. A distonia atinge 33 milhões de pessoas no mundo, e iniciei uma campanha que deverá ser coroada em 17 de outubro no Carnegie Hall, quando celebro 60 anos da minha estreia naquele palco. Após o concerto, haverá uma coletiva para que, uma vez que a pandemia já esteja mais controlada, chamar a atenção de governos para a pesquisa que inclui distonia e o mal de Parkinson. Em outras palavras, o homem consegue tirar fotografia de uma pedra em Vênus e não consegue descobrir a solução para a distonia, a distonia vocal e o mal de Parkinson. É preciso investir mais e vamos ajudar no que puder.

O senhor passou por tantos desafios físicos e em sua carreira que cabe perguntar: a música é uma experiência corporal ou espiritual?
Tem que ter o coração no cérebro, mas se a pessoa não tem a alma… A alma é algo que transita ao lado do corpo. Se a pessoa não tem a alma jamais será capaz de transmitir emoção. Hoje (dia da entrevista, em 26 de janeiro), prestei uma homenagem à minha cunhada no Instagram. Ela morreu, com covid, e coloquei uma peça que combinei com meu irmão, e dizendo na mensagem que a música explica que Deus existe. É um vínculo espiritual, sim. Então, sobre sua pergunta, é preciso cuidar do físico e do espírito com a mesma intensidade. Quanto aos desafios, há dois tipos: o obstáculo que é colocado na sua frente e que parece praticamente impossível de ser ultrapassado. Para este você tem que ter determinação e ultrapassar. E aquele que Deus colocou e que não dá para ser ultrapassado. Para esse, é preciso ter humildade. O grande segredo na vida é distinguir um obstáculo do outro.

Tem religião?
Acredito em Deus profundamente, mas aceito todas as religiões, acredito que todos os caminhos levam a Deus.

Como é seu cuidado com o espírito?
Cuidar do espírito é, para mim, assumir na vida a responsabilidade social, e o que você pode fazer. No meu caso, é pela música, o que pode fazer com crianças e jovens no que diz respeito não só à inclusão, mas mostrar a eles o que é cultura, e o que a música significa para uma nação, porque as artes e a cultura são as almas de uma nação. E quando a nação não está ligada nem à cultura nem as artes, é porque ela está num caminho que eu diria muito problemático. Então, responsabilidade social passou a fazer parte da minha vida há cerca de vinte e poucos anos, e hoje já posso garantir que trouxe milhares de crianças e jovens para esse universo fantástico da música clássica. Com meus concertos, minha orquestra, procuro levar a música clássica a todos os segmentos da sociedade, desde um Carnegie Hall até a favela, uma Fundação Casa, um presídio. Essa é minha questão hoje e que pretendo cumprir até o final de minha vida.

 

É verdade que, nos anos 1970, na Granja Viana, o senhor já promovia a inclusão?
Eu organizava concertos para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), às vezes convidava cem, duzentas pessoas para assistir concertos na minha casa. Uma das épocas mais felizes da minha vida foram os anos que passei na Granja Viana. Mas eu morava entre Nova York e a Granja, e quando voltei definitivamente, que os médicos falaram que nunca mais poderia tocar profissionalmente, e iniciei minha carreira de maestro, seria impossível morar fora de São Paulo e ter os ensaios, que às vezes vão até altas horas da noite, e para fazer a Bachiana Filarmônica Sesi-SP, isso demandou também muita ação na capital. Tenho saudade da Granja. Moraria na Granja de novo se não tivesse que vir a São Paulo. Se tudo que eu tivesse que fazer fosse lá dentro, certamente levaria os últimos 20 anos da minha vida por lá.

O que a Granja tinha de tão feliz?
No meu tempo de Granja, no começo dos anos 1970, todo mundo se conhecia, então, quando corria pelas ruas, qualquer um que passava cumprimentava, era um ambiente que não dá mais para voltar no tempo. E a Granja Viana foi diferente de outros condomínios fora de são Paulo, ela teve um crescimento vegetativo, e não um crescimento planejado. Era tudo muito tranquilo. Veja que, naquela época, todo sábado e domingo tinha jogo de futebol em casa, e do mesmo jeito que vinham personalidades como David Uip (médico), diretores de bancos, vinha uma garotada que morava do outro lado, da parte pobre, e eu fazia questão que jogássemos todos juntos, depois todos iam juntos para o banho de piscina. Porque minha teoria é que perante Deus somos todos iguais, então o jogo de futebol tinha a maior diversidade de jovens possível. Todo sábado de tarde e domingo de manhã, a gente juntava uns quatro times, e fazíamos torneios das duas às seis da tarde, e no domingo das dez a uma.

Quem ganhava?
Ah, o dono do campo sempre tinha certo privilégio (risos). Eu não era um craque não, meu time muitas vezes perdia, mas sempre botava uns dois craques jovens no meu time para talvez ter uma pequena vantagem sobre os outros. Mas ainda assim ganhei muito e perdi muito.

O futebol é uma paixão que se compara à música?
É, o amor à música nasce e morre com você, o amor a um time de futebol também nasce e morre com você.

É muito duro ser apaixonado pela Portuguesa?
Bom, talvez seja mais difícil gostar de um time como a Portuguesa do que torcer por um Corinthians. Mas a Portuguesa hoje, pela primeira vez, ganhou a Copa Paulista, e vai voltar para a série B, ou seja, não desistiu não. Ela começou a queda nas principais divisões por um ato não ético no STJD (ato irregular que gerou alterações na classificação dos times na tabela oficial do campeonato nacional de 2013), foi aí que iniciou a derrocada dela. Naquela época, eu fazia palestras para os jogadores para motivá-los a ir para a série A. Num dia que eles jogaram a última partida e já estavam classificados, eu estava dando um concerto em Nova York, no Metropolitan, e quando saí do palco, vi pela internet o time da Portuguesa no Canindé com uma faixa escrita “Obrigado, maestro, sua história é a nossa inspiração”, agradecendo por eu ter ajudado na conquista, tenho até essa foto aí (é a única foto sobre o balcão do bar de sua enorme sala, onde reina um piano clássico). Por causa daquela questão pouco ética, nunca mais fui à Portuguesa, mas este ano nomearam um presidente que me pediu para eu ser nomeado simbolicamente embaixador do centenário da Portuguesa. E justamente quando a Portuguesa ganhou a Copa Paulista, então fui pé-quente, como fui na Vai-Vai (o maestro foi tema da escola de samba paulistana em 2011, com o enredo vitorioso A música venceu).

O senhor ainda cultiva essa paixão? Ainda assiste futebol?
Claro, esse último ano por causa da pandemia só saí de casa para live e para concerto, saio do carro e entro com máscara. Todos os músicos com o distanciamento necessário. Faz dez meses que não saio de casa.

Por Fabio Sanchez

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