A caminho dos 90 anos, granjeiro Mario Gargiulo evoca memórias de tempos bons

Ao cair da tarde ensolarada de segunda-feira, quase inverno, chego à Mario´s Motor no Parque São George. Pergunto pelo proprietário, senhor Mário Gargiulo. Um dos funcionários me aponta para o fundo da oficina cheia de carros, superorganizada. Continuo caminhando e me deparo com um senhor lépido e faceiro, que parece estar no final dos 60 anos, alto (vou saber depois que tem 1m80), cabelos grisalhos e olhos claros. Pergunto-lhe pelo senhor Mário. Para minha surpresa, ele diz que é ele.

Ele me convida para sentar na cadeira à frente de sua mesa. Para ganhar tempo (ainda estou ajustando a imagem mental do “jovem” de 60 anos e poucos anos à minha frente com a do senhor de 89 que tinha ido entrevistar), pergunto sobre sua ascendência. Adoro perguntar sobre a história das famílias. Seu Mário engata uma conversa animada, dizendo que seus pais vieram de Tramutola, na Itália. Acho que conheço bem a geografia italiana, mas confesso que não sei exatamente onde a cidade fica. Então há aquele momento em que a conversa fica no ar porque ele também não se lembra. Damos risada, porque minha memória também não anda aquelas coisas desde a pandemia. “Do Norte da Itália, seu Mário?”, pergunto. “Não”, responde ele. “Do Sul, então, tipo Calábria, Sicília?”. “Não”, diz prontamente. Arrisco a parte central da Bota. “Roma, Nápoles”? “Isto, perto de Nápoles”. Rimos novamente. Vencemos uma crise informativa juntos e isto cria uma ponte para o diálogo (vou buscar no Google depois e se trata de uma comuna da região da Basilicata, com cerca de 3.250 habitantes).

Será o único “branco” dele. Conforme a conversa engrena, a memória de Mário se vitaliza como um motor bem aquecido. Nascido em 20 de maio de 1934, os pais vieram da mesma cidade pequena ao sul de Nápoles, mas se conheceram aqui, no reduto italiano da Bela Vista.  Sei agora que ele tem 89 anos. 89! De repente, ele percebe que há uma blusa branca enrolada aos pés da cadeira, levanta-se e abaixa-se com a flexibilidade de um jovem de 30 anos para pegá-la. Um cliente que está chegando para pagar o conserto do carro presencia o feito, ouve que ele tem 89 anos e fica literalmente de queixo caído. Concordo com ele, balançando a cabeça.

Nos anos 1960, na Alemanha, quando servia no exército americano

Com um curso técnico na bagagem em 1957, Mário vai para os Estados Unidos. Era a “época dos cartões perfurados” e ele trabalha como programador de sistemas da Organização dos Estados Americanos (OEA). Depois, iria trabalhar na IBM de lá. “Foram momentos bons da vida. Naquele tempo imigrante nos Estados Unidos com a idade de 22 anos tinha de cumprir a lei, tinha de se apresentar, e eu preferi fazer o exército. Tava na época da Guerra Fria e me mandaram para o exterior. Conheci cinco ou seis países, Luxemburgo, Franca, Alemanha, Holanda, Dinamarca, e outros pequenos. Um amigo meu alemão tinha carro e a gente ia passear. Só não fui para a Itália – deixei por último e acabei não indo, uma vergonha!”.

Nos anos 1964, quando trabalhava na OEA

Foi nos Estados Unidos que conheceu a primeira esposa, a americana Kathleen, que também trabalhava na OEA. “Morávamos em Maryland, depois na Virgínia, que é como se fosse um subúrbio de Washington, ficava a 20 minutos de meu trabalho”. Já estava realizado trabalhando lá, com três filhos, tinha casa, automóvel e barco – “coisas que eram comuns por lá”. “Mas minha senhora quis voltar para o Brasil. Ela dizia que sentia falta da feira. Ela era secretária, trabalhou para a Cia (a Central Intelligence Agency ou Agência de Inteligência americana), antes de ir para a OEA”. Na época, morávamos em Springfield, na Virgínia [ele não conhece a fictícia Springfield inspirada na cidade homônima do Oregon que o desenhista Matt Groening usou como inspiração para criar a do sitcom The Simpsons].

A casa dos EUA, em Springfield, Virginia

Antes de ir aos Estados Unidos, Mário morava no Planalto Paulista. Quando retorna ao país no final dos anos 1970, resolve voltar ao bairro. “Eu queria comprar uma casa lá, mas era tempo de inflação e ela não deixou, então eu já conhecia a Granja e disse ‘vou morar no mato’”.

Foi o terceiro morador do Recanto Inpla, “quando a Granja era Granja”. Terminou de construir a casa em 1970 e passou a morar nela no início de 1980. “Fui um dos pioneiros e conheço isto aqui como a palma da minha mão. Cheguei aqui e não tinha ninguém, era uma beleza. [A Granja] me trouxe grandes amigos. Meus filhos se criaram aqui. Era um lugar diferente de São Paulo. Quando cheguei, já estava duplicada a Raposo Tavares, mas não tinha a separação da pista. Não tinha as muretas, nem luz”.

À direita, com 22 anos, no exército americano

Havia descoberto que gostava muito de mecânica nos Estados Unidos e, na volta, resolve montar uma oficina no Itaim com o irmão. Diz que trouxe a oficina completa dos EUA, com equipamentos que não tinham aqui no Brasil. Nela trabalham por 12 anos até os locadores pedirem o prédio. Como o irmão-sócio não queria comprar o local, “abri em 1992 a Mario´s Motor aqui do lado” – diz, apontando com o braço direito em direção ao pronto atendimento do Parque São George. “Depois só mudei de porta”, diz, apontando para o local atual. Já se vão 31 anos.

Com a primeira filha, Sabrina

Imagino que o mercado que ele atua mudou muito nas últimas décadas. “Sim, nem sei mais a quantidade de oficinas que têm aqui. Mudou muito e hoje é a eletrônica que comanda tudo no automóvel. Antes era tudo mecânico, carburador, vela, platinado. O motor funcionava mais com parte mecânica e elétrica que eletrônica. Hoje têm módulos para porta, para vidros. Daqui para frente vai ser a era do carro elétrico”.

Ficou casado por 48 anos com Kathleen. “O cigarro matou ela. Naquele tempo podia fumar até no restaurante, e eu fumava por tabela. Era a maior briga que a gente tinha. O enfisema pulmonar a levou”. O segredo de um relacionamento tão duradouro? “O respeito é o principal. Também não sou de briga”, ajunta.

Conforme o papo avança, vou ficando cada vez mais curiosa com a história de Mário. E pergunto: e se ele tivesse ficado nos EUA? Bem pragmático, como se já tivesse ponderado muito a questão, responde: “Eu teria tido uma vida diferente. A aposentadoria é melhor nos EUA, porque onde eu trabalhava tinha um sistema de pecúlio que tirava 7% de seu ordenado e colocava 14% que ia para o fundo, rendia um jurinhos que lá são muito baixos, 1-2% por ano. Mas dava para ir vivendo bem na Flórida ou outro lugar quente, como os aposentados de lá fazem”. Mas não se arrepende de ter regressado.

Começo dos anos 1980, na casa no Recanto Inpla
Seu Mario à esquerda, na oficina do Itaim

Ao voltar, veio com a família. Os filhos pequenos cresceram. Um mora em Cotia, uma filha em São Paulo e a outra voltou para os Estados Unidos. “Eu me orgulho muito dos meus filhos, mas acho que era um pouco rígido como pai”.

Filho de italianos, quando convida alguém para sua casa, cozinha. “Faço uma bela macarronada, lasanha, gosto de fazer risoto de camarão. Mas arroz e feijão, estas coisas, não faço. Gosto de fazer mais umas comidinhas italianas, bife à milanesa, pimentão recheado como o da minha mãe, com arroz e carne moída. Um belo molho gostoso, somente com tomate e uma boa linguiça calabresa. “Minha mãe fazia um cabritinho como ninguém, era a coisa mais gostosa. E as macarronadas dela! Massa era feita em casa, como tagliarini e fusilli [um tipo de massa semelhante a um parafuso típica do sul da Itália]. Cada família tinha uma especialidade, uma fazia tudo o que era massa, a outra todo tipo de carne. A cada final de ano, eram 40, 50 pessoas. Que é outra coisa que está acabando. No ano passado ainda nos reunimos, tinha umas 30 pessoas”.

Com 20 e poucos anos na Bela Vista, sobre a moto

Apesar de falar dos bons anos de sua vida, uma pergunta me atravessa e a faço: Ele se arrepende de não ter feito algo? “Eu acredito que não, que eu fiz tudo que gostaria de ter feito. A família cresceu, cada um foi para seu lado. Após o falecimento de minha senhora, estou com uma mulher muito boa, que vale ouro, a Lia. Estamos há mais de 10 anos juntos. É uma vida muito boa”.

Faço as contas e, há dez anos, ele estava com 79 anos. Como teria conquistado Lia na véspera dos 80? “Eu a via sempre, ela trabalha na Beth. Um dia eu mandei um amigo dar um recadinho para ela. Depois dei um telefonema, pronto, estamos juntos até hoje. Ela é esteticista. Tem 62 agora. Ela tem dois filhos casados”.

Fico curiosa de saber mais sobre o segredo de sua evidente saúde. “Minha saúde é praticamente perfeita. Não tomo remédio nenhum. Depois de dois anos, vou agora fazer um check up completo. Acho que o segredo é não beber, não fumar e não se meter na vida dos outros. Podendo, fazer o bem”. É, penso, talvez não seja uma recomendação tão difícil de seguir.

Aí ele para e continua respondendo: “outra coisa importante: meus amigos são todos mais jovens do que eu. Eles têm 40, 50 anos de idade. Tomo café com eles todos os dias, a gente bate o maior papo. Tempos atrás eu corria de automóvel e motocicleta, fiz muita subida de montanha e gosto de carro antigo. Então, tenho um bom grupo de conhecidos. Nunca fui colecionador, mas cheguei a ter quatro carros. Ah, os clientes viram amigos também”. Penso no famoso estudo de longevidade da Harvard Medical School, que acompanha homens há 85 anos – começou quatro depois do nascimento de Mário. A descoberta mais consistente da pesquisa é que são os relacionamentos positivos que nos mantêm mais felizes, saudáveis e nos ajudam a viver mais. Não a carreira, o dinheiro, exercícios ou uma dieta saudável [Aliás, vale a pena ver a palestra adorável do coordenador atual do estudo, Robert Waldinger, no Ted.com].

Eu me pergunto como ele vê o mundo hoje. Mário nem titubeia: “Está difícil, porque o que mata o mundo é a política. Mundo politizado este. Um é da esquerda, outro da direita, um contra o outro. Não é mais o mundo de antigamente, que era mais calmo. A política era mais limpa. Não tem um que respeita o outro hoje. Não é só no Brasil”. Como se mantém informado? “Assisto a Globo, vejo o Jornal Nacional, leio uns três ou quatro jornais no celular (e aponta para ele)”.

Tirando os fuscas, provavelmente eu não saberia reconhecer um modelo de um carro antigo nem que minha vida dependesse disso. Mas gosto imensamente de conversar com Mário ao lado da graciosa Vespa verde vintage que ele tem na oficina [por um momento, me imagino subindo e descendo as ladeiras italianas com ela, como nos filmes]. “Tenho um Camaro de 35 anos. E minha Vespinha. Tem uns 15 anos que eu tenho ela. Vendi uma Alpha Romeu 1972 que era meu xodó, participava de competições com ela em Interlagos. Na pandemia, quando pararam todos os eventos, não sei o que me deu na cabeça e, quando um amigo ofereceu 80 mil reais por ela, topei. A pessoa que comprou vendeu por 175 mil e agora sei que ela está sendo vendida por 260 mil reais”. Mais do que simples mercadorias, para ele, os carros antigos representam um hobbie. “É gostoso fazer a manutenção deles e as amizades nos encontros de carros antigos”.

Religião é importante para ele? “Eu sou católico, vou à igreja. No começo da rua Roma tem uma capela e, às vezes, a gente vai lá”.

Menciono o aumento de gente centenária no mundo e pergunto se ele gostaria de chegar aos 100. “Não sei. Estou com uma irmã que está com 96 e ainda cozinha, lúcida, lúcida. O marido faleceu com 96. E tenho uma prima que viveu 103 anos, lúcida. Estava bem financeiramente, tinha um motorista e duas moças que cuidavam dela”.

Ele reflete. “Enquanto estou podendo me mexer, tudo bem. Chegou a hora, me leva, e tudo bem. Triste uma pessoa não poder fazer o que gostava. O ‘Homem’ pode me levar para o paraíso”. O que é o paraíso para ele, pergunto. “O paraíso é o que a gente vê nos filmes, nas revistas, aquele jardim bonito, se é que existe. Não custa nada acreditar que existe. Eu agradeço a Deus e ponho as mãos para o alto baixinho, senão ele me puxa”. Rimos juntos. Bom humor é fundamental.

É, falar sobre a finitude evoca reflexões. “Não tenho medo de morrer”, prossegue. “Sou muito realista, acho que quando chegar a hora a gente vai e pronto. Na verdade, eu acho que vivi bastante e bem. Se eu for agora, para mim tudo bem. É ruim para os outros que a gente deixa”.

Quer se aposentar? “Estou com vontade, mas sigo trabalhando. Melhor do que ficar em casa doente. Eu tenho certeza que é melhor trabalhar do que pagar médico”, diz passando, mais uma vez, o cartão de crédito de um cliente na maquininha.

Pergunto se tem desejo de fazer algo que ainda não fez. “Com sinceridade, a única coisa que eu gostaria é ir para a Itália. Se eu vender meu Camaro, eu tenho como ir. Tenho um sobrinho, que é um grande médico dermatologista, que adora ir para lá. Já foi até visitar o local onde minha mãe nasceu e viveu antes de vir para o Brasil. Por incrível que pareça, a casa da minha mãe estava lá, só que em ruínas. Quando ele foi visitar, ficou amigo do prefeito e o italiano falou ‘se sua avó estivesse viva, ela poderia assinar a autorização para que a prefeitura levantasse as paredes, íamos deixa-la por fora como era na época’. Mas como não tinha ninguém da família, o imóvel ficou para prefeitura. Eu quero ir com ele porque ele conhece bem a Itália. Tem aqueles restaurantes, aquelas montanhas. Imagina tomar o café olhando para aquele mar: não tem dinheiro que pague. Eu vejo pelas fotografias que lá, é um paraíso”.

Por Monica Martinez, jornalista, psicanalista junguiana e escritora

Artigo anteriorMala de inverno: peças coringas para levar nas viagens
Próximo artigoEdição 278: Julho de 2023