Anjos Parte II: Marcos Sá escreve sobre a história emocionante e comovente de Filó

“QUANDO ABRI OS OLHOS, não gostei do que vi. Sentia muito frio, fome e minhas duas
irmãzinhas, tiritavam de medo ao meu lado. Carros passavam, espirravam barro e o barulho era intenso. De vez em quando, criaturas estranhas jogavam pedras e paus em nós e pareciam se divertir com a nossa dor. Cheiros estranhos penetravam nas minhas narinas e me enjoavam as entranhas. Sentia dor nas pernas e em lugares do meu corpo que não sei dizer o nome. Meu estômago queria fechar de ausência. Um vazio enorme dominava
minha mente e eu não conseguia pensar em nada, mesmo porque não sabia quem eu era e não tinha ninguém para me defender. Minhas irmãs choravam de pavor. Com olhar esbugalhado, assustadas imploravam para que eu fizesse alguma coisa. Eu mal conseguia me mover. Meus comandos não me obedeciam e, trôpega, não parava em pé. Minha saliva engrossava na medida em que o pânico dominava o meu ser. Lembro-me que nós três sentíamos uma enorme sensação de abandono e nosso instinto de sobrevivência nos empurrava uma contra outra. Era como, se ficando juntas, ficaríamos vivas. Tínhamos um
impulso enorme de grudar uma na outra, tal como siamesas separadas pela dor. Sabe, quando você é criança, tem medo durante a noite e corre para a cama dos pais? Aí você se enfia no meio dos dois e se sente superprotegido! Mas, logo, eles adormecem e você continua acordado. E com medo. Como numa volta à barriga da mãe, dá vontade, se apertando em conchinha no corpo materno. Era como nós três nos sentíamos. Mas sem ninguém para nos chamar de filhas. Sem pai nem mãe, órfãs de nascimento. Abortadas após o parto, abandonadas quase mortas. Era por nossa conta. Fazer o quê? Quem era eu? Como fomos parar naquele lugar? Onde estariam meus pais? Quem seriam eles? Foram dias e dias de sofrimento. Minhas esperanças se esgotavam, estávamos traumatizadas em estado de choque, moribundas e em frangalhos. Uma das minhas irmãs tinha um ferimento provocado por uma paulada gratuita desferida por uma daquelas estranhas criaturas. A fome e o desespero tomavam conta de nós três. Achamos que estávamos no inferno e, de vez em quando, um diabo vinha nos maltratar. Foi quando um anjo surgiu. Disfarçado de gente, nos enrolou num cobertor colocou-nos numa caminhonete e nos tirou dali. Eu não sabia o que se passava e, assustada, fiz xixi no anjo. Quando acordei gostei do que vi. Estávamos limpas, com os ferimentos tratados e sendo alimentadas juntamente com outras iguais a nós, numa espécie de hospital. Mas ainda tínhamos medo. Desconfiadas, nós três continuávamos grudadas umas as outras e olhávamos tudo ao redor com pavor. Pouco a pouco, mais anjos apareciam e sempre nos tratavam com amor. Começamos a nos sentir
confiantes. Alimentadas, higienizadas, medicadas, tratadas com amor e sob cuidados
angelicais, achamos ingênuas que estávamos no céu. Será que morremos as três? Descobrimos que continuávamos na terra quando vimos o sofrimento de vários amiguinhos que estavam se recuperando de graves ferimentos e presenciamos a morte de alguns deles, apesar dos esforços diários dos anjos para salvá-los. Se eles morreram, então nós só podemos estar vivas. Que mundo estranho esse que vivemos! Criaturas malignas nos causam sofrimento e dor e anjos caridosos nos socorrem, doando-se voluntariamente na esperança de um mundo melhor! Filosofava eu sobre a insanidade humana, quando o anjo-chefe apareceu. Junto com ele, vinha alguém que nos olhava curiosamente. Eu e minhas maninhas, grudadas umas às outras, queríamos entrar na parede atrás de nós. Ambos trocaram algumas palavras e, logo depois, fui separada das minhas irmãs. Senti carinho no olhar do visitante, mas a emoção de deixá-las para trás, reacendeu em mim o medo da solidão. Foi a última vez que eu as vi e acho que nunca mais as verei. De tristeza, fiz xixi no colo do meu visitante. Descobri logo depois que estava sendo adotada. Levaram-me a um lugar, onde tudo era novo para mim. Um enorme e simpático anfitrião me aguardava com uma alegria infindável. Ele me mostrou todos os esconderijos e seus lugares preferidos na casa, ensinou-me truques e, hoje, quase tudo o que eu sei devo a ele. Ele virou minha referência no mundo e ajudou a superar meus traumas. Na minha nova família, tem também uma velhinha simpática que, de vez em quando, eu resolvo amolar. Ambos têm uma enorme paciência comigo, do tamanho coração deles. Meu novo dono, de vez em quando, me dá umas broncas, mas adoro fazer festa para ele. Eu sou a popular Filó, ou Filomena para os não chegados. Sou uma vira-lata de raça, ex-cão de rua sem teto, sem eira nem beira, com apenas seis mesesinhos de vida. Hoje, vivo muito feliz! Meu anfitrião é o Dôggo. Um baita de um labrador marrom de 40kg, com cara de bonzinho. A velhinha simpática é a Clara, uma labrador com 15 anos, mas com corpinho de 10. Os anjos pertencem a uma ONG aqui da Granja Viana. Minha história é verdadeira. Ainda faço xixi quando me emociono, mas acho que isso passa quando eu crescer…

Pois é, escrevi esse texto para a edição da Revista Circuito de maio de 2014. E há pouco, a Filó se foi. Dona de uma inteligência rara e portadora de traumas causados pela maldade humana. Foi feliz e nos deixou tristes com sua partida. Republico o texto em homenagens a Filó.


Por Marcos Sá, consultor de mídia impressa, com especialização em jornais, na Universidade de Stanford, Califórnia, EUA. Atualmente é diretor de Novos Negócios do Grupo RAC de Campinas

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