Arte Observada: Tomie Ohtake

Nossa colunista Milenna Saraiva fala sobre a carreira de Tomie Ohtake, uma pesquisadora incansável da potencialidade da forma

Tomie Ohtake nasceu em 1913, em Kyoto, Japão. Em 1936, veio a São Paulo para visitar um de seus cinco irmãos. Impedida de voltar em razão do início da Guerra do Pacífico, acabou ficando no país. Casou-se, criou seus dois filhos e, com quase 40 anos, começou a pintar incentivada pelo artista japonês Keiya Sugano.
Sua carreira atingiu plena efervescência a partir dos seus 50 anos de idade, quando realizou mostras individuais e conquistou prêmios na maioria dos salões brasileiros. Em sua extensa trajetória, participou de 20 Bienais Internacionais, contabilizando em seu currículo mais de 120 exposições individuais e quase 400 coletivas entre Brasil e o exterior.
A obra de Tomie destaca-se tanto na pintura e na gravura quanto na escultura. Marcam, ainda, sua produção as mais de 30 obras públicas desenhadas na paisagem de várias cidades brasileiras, principalmente em São Paulo. Sempre disposta a novos desafios, Tomie levou sua arte para outras frentes. Criou dois cenários para a ópera Madame Butterfly: o primeiro em 1983, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e o segundo em 2008, no Teatro Municipal de São Paulo. Foi, também, convidada a criar para prêmios e comemorações, como por ocasião do Centenário da Imigração Japonesa. Em 2008, criou uma monumental escultura para a cidade de Santos e outra para o Aeroporto Internacional de Guarulhos. Também fez peças de pequenas dimensões, como o troféu da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a homenagem-prêmio para a Fórmula 1, utilizando a pedra do pré-sal (2011), cartazes, ilustrações de livros e periódicos, medalhas e objetos para laureados de muitos eventos são parte de sua diversificada produção.
Com seu reconhecimento internacional, Tomie tornou-se uma espécie de embaixadora das artes e da cultura no Brasil. Em 2013, Tomie Ohtake completou 100 anos, comemorados com 17 exposições pelo país. Dos 100 aos 101 anos criou cerca de 30 pinturas. Até a sua morte, em fevereiro de 2015, aos 101 anos, seguiu trabalhando.
Após uma breve passagem pela pintura figurativa, Tomie Ohtake definiu-se pelo abstracionismo. No início da década de 1960, empregou uma paleta de cores reduzida, com predominância de duas ou três cores. Em algumas obras, utilizou pinceladas “rarefeitas” e tintas diluídas, explorando suas transparências. Posteriormente, surgiram em seus quadros formas coloridas, grandes retângulos, que parecem flutuar no espaço. Ao longo da década de 1960, usou mais frequentemente tons contrastantes. A artista era fã do pintor, também abstrato, Mark Rothko (1903-1970), sendo nítida sua influência nesta obra.
Sobre uma grande superfície branca, Tomie desenha duas espessas e largas manchas de tinta amarela, resultando em, além de uma forma abstrata, uma forma caligráfica que emerge da tela. A pintura une impecavelmente alguns elementos de sua poética artística da década de 1960: a utilização do gesto solto, o diálogo individual e crítico com o Concretismo e a referência a elementos orientais. Vale começar pelo fim. A obra parece ser caligráfica. Remete à tradicional arte do Shodô, que a artista havia aprendido em sua infância no Japão. Não se trata da reprodução de costumes, mas sim de absorção seletiva de elementos culturais que são recriados e substituídos diante de contextos novos. Assim, o papel-arroz cede espaço para a tela, a tinta preta é substituída pelo enfático amarelo e, finalmente, todo o seu sentido muda. Tomie não narra, não descreve. Ela apenas pinta. Esse modo de pintar, em que o corpo da artista estabelece uma relação próxima a tela, tanto foi adquirido pela tradição cultural, como resultou do ambiente artístico internacional que se difundia no Brasil naquela época.
A artista evoca nesta obra a definição geométrica das formas para romper com sua austeridade. A forma abstrata pode ser a letra X, retratada de forma assimétrica. A letra é o elemento mínimo a partir do qual se forma a palavra. Suas imperfeições gráficas negam sua suposta precisão e exatidão; negam a carga de conhecimento que ela supostamente traria consigo. A obra, aparentemente fruto de gestos simples, explora encontros entre tradições e dialoga com culturas diferentes. Para Tomie, a abstração é o resultado de um processo complexo, em que se somam as condições do presente com as heranças do passado. Em suas palavras: “Minha obra é ocidental, porém sofre grande influência japonesa, reflexo de minha formação. Esta influência está na procura da síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa.”
Ohtake foi uma pesquisadora incansável da potencialidade da forma. Superando dificuldades e restrições, como a de ser estrangeira, mulher e ter se iniciado tardiamente nas artes, suas obras nos ensinam novas maneiras de olhar, de perceber e de contemplar o mundo. Em Tomie, tradição e presente se unem por meio de obras expressivas e precisas, simples na forma, mas complexas em significados, sínteses perfeitas entre o rigor do método e a sensualidade das formas.


Vamos Observar:

Sem Título (Composição em Amarelo), 1966

135 x 110,3 cm

Óleo sobre tela

Acervo do Masp, SP


Por Milenna Saraiva, artista plástica e galerista, formada pelo Santa Monica College, em Los Angeles.

 

 

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