Arte para salvar e reconstruir vidas

Artista visual, o granjeiro Rafael Duque desenvolve projetos nas áreas de publicidade, moda, editorial e design. Seu mais recente trabalho foi bem especial: ele desenvolveu uma arte em NFT para ajudar mulheres no Egito, as chamadas Al Gharemaat ou As Endividadas.

“Pela oportunidade de fazer arte para salvar e ajudar a reconstruir uma vida, ainda mais de uma mãe que é arrimo de família, considero esse um dos maiores e mais importantes trabalhos da minha vida”, descreveu em entrevista para nossa equipe.

Abaixo, ele fala sobre sua trajetória, o papel da arte e inspirações.

 

Como descobriu a arte?
Criança rabisca tudo, é imaginativa e investigadora nata, e eu não era diferente; assistindo desenhos da Disney despertei minha paixão por contar histórias: primeiro fazendo de conta que cada peça do meu jogo de dominó de plástico era um personagem e, depois, desenhando essas histórias e personagens em qualquer superfície que eu conseguisse acessar – inclusive uma finada geladeira que perdeu o esmalte quando tentei apagar minha arte com bombril antes que minha mãe percebesse. Na adolescência, desenvolvi como pude minha aptidão para desenho e criatividade, mesmo sem incentivos externos a princípio.

Teve apoio da família?
Meu pai, com medo que eu não conseguisse me sustentar como ilustrador, me incentivou a trabalhar na oficina mecânica de um amigo que, a meu pedido, me ensinou a parte de funilaria. Mas o que me interessava na manutenção dos carros era aprender sobre colorimetria e manuseio da pistola pulverizadora. (risos) Em paralelo, para me manter afastado das drogas e do tráfico que vi afetarem amigos do bairro que cresceram comigo, me focava em dançar break e fazer ilustrações, trocadas com amigos e colegas por edições da Revista Rap Brasil Especial Graffiti – algumas, inclusive, chegavam com vestígios de drogas e precisavam ser higienizadas antes de lê-las e levá-las até aulas gratuitas de grafite no Centro Cultural de Barueri, onde a pedido, era ensinado sobre como reproduzir os estilos de grafite e arte fotografados nessas revistas.

Quando passou a fazer da arte sua profissão?
Foi aos 20 e poucos anos que iniciei meu primeiro curso básico de desenho em Osasco, na Academia Paulista de Artes (apliquei a metade – que não entreguei à minha mãe para cobrir despesas da casa – do dinheiro de rescisão da demissão de um trabalho como pintor industrial e pulava catraca para embarcar o trem de onde morava em Jandira para Osasco), indicado por um mapa desenhado pelo André Maciel, artista visual e fundador do Estúdio Black Madre, que na época trabalhava como caricaturista num shopping de Osasco e com quem comecei uma amizade que dura até hoje, no dia em que o abordei para perguntar sobre as caricaturas e recebi aquele mapa. Passei a trabalhar como caricaturista em eventos para pagar o restante do curso e participar de vários festivais como o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, onde pude trocar ideias com vários dos cartunistas e caricaturistas expoentes do país. Foi num desses eventos de caricatura ao vivo que uma importadora me convidou para trabalhar como designer de embalagens. Nessa empresa conheci minha esposa e companheira da vida, Vanessa Taveira. Depois que alugamos a primeira casa juntos em Osasco, ela quem me incentivou a deixar essa profissão e retomar minha verdadeira vocação: ilustrar. Em 2015, como ganhei uma bolsa integral para cursar a Faculdade Méliès de Animação, me dediquei integralmente às artes visuais – estudando de segunda a sexta e praticando nos fins de semana. Durante esse período, Vanessa não só me apoiou como investiu em mim; para que pudesse maximizar meus estudos no prédio, me buscava tarde da noite no Fox 2007 vermelho, que compramos juntos ainda nos primeiros meses de namoro, e segurava as contas da nossa casa com o Brechó Chiqueto, empreendimento que abriu vendendo as próprias roupas por grupo de Whatsapp e entregando-as de metrô e que hoje conta com loja física, entregador e quatro funcionárias mães-solo. O Brechó da minha esposa foi peça fundamental na carreira como artista visual e, posterior, ingresso no mercado publicitário. Foi uma época de muita dificuldade financeira em que superamos juntos diversos perrengues, inclusive fome.

E hoje?
Desde 2016, enquanto ainda cursava na Faculdade Méliès, trabalho como artista visual e minha principal oportunidade na carreira veio através do contato que retomei com meu amigo André Maciel, em seu ateliê de artes visuais Black Madre. Por intermédio do seu estúdio, um dos maiores e mais premiados do país, aprendi sobre o funcionamento do mercado publicitário na minha segmentação – em nível nacional e internacional – e participei de diversos projetos e campanhas publicitárias premiadas nos maiores festivais e periódicos de Publicidade e Propaganda, dentre eles Cannes, Clio Awards, El Ojo, London International Awards e Lürzer’s Archive.

Como o projeto Breakchains with Blockchain chegou até você?
O Black Madre foi um dos primeiros estúdios brasileiros a produzir uma NFT e, em abril de 2022, por oferta da agência de publicidade Horizon FCB Dubai, convidou seus colaboradores – eu, inclusive – a participar voluntariamente do projeto sem fins lucrativos Breakchains with Blockchain dessa agência para a ONG egípcia Children of Female Prisoners Association. Ilustramos NFTs temáticas leiloadas pela ONG – na plataforma digital operada por criptomoeda OpenSea – ao preço mínimo da dívida que a mulher egípcia encarcerada que inspirou a ilustração contraiu (despesas de venda e transferência inclusas) e o valor arrecadado foi revertido para o saldo e liberdade dessa mulher no país, que é compartilhada por meio de atualizações nas redes sociais da entidade não governamental. No Egito, as mulheres que inspiraram essas ilustrações são taxadas como Al Gharemaat ou As Endividadas e, em sua maioria, contraem empréstimos que não conseguiram saldar para cobrir necessidades médicas, emergências familiares ou necessidades básicas. Uma mulher pode ser presa mais de uma vez por contrair mais de um empréstimo; na primeira prisão ela é sentenciada a cumprir um período entre meses e anos de reclusão, na segunda prisão ela não é liberada da cadeia até que a dívida seja paga. Por isso qualquer quantia recolhida a mais pela Organização é destinada à educação e reabilitação social dessas mulheres, para prevenir que elas contraiam novas dívidas no futuro.

Qual foi sua ilustração que contribuiu com o projeto?
Minha ilustração é a 317 Iman. A mulher que nomeia a obra vive em um quarto com banheiro compartilhado com quatro filhos menores e o marido, incapacitado de gerar renda estável por sofrer com pedras nos rins. Foi sentenciada a 3 anos de prisão quando não conseguiu pagar o empréstimo que fez para tentar cobrir as despesas da família com revenda. Na ilustração, o véu de Iman abarca os quatro filhos sentados em posição vulnerável e o marido prostrado, numa posição que remete tanto ao posicionamento para tentar expelir pedras quanto à lateral de um rim; splashs dourados apontando a área renal do corpo do marido, nas crianças, nos olhos da mãe e nas correntes se quebrando nos pulsos – também dentro do véu – simbolizam a esperança de reconstrução da família.
Pela oportunidade de fazer arte para salvar e ajudar a reconstruir uma vida, ainda mais de uma mãe que é arrimo de família, considero esse um dos maiores e mais importantes trabalhos da minha vida.

Quais são suas inspirações? 
As minhas inspirações são constituídas por varias etapas da minha vida. Quando criança com a família reunida, meus avós eram muito amorosos. Depois, veio a adolescência, um momento muito conturbado com muitas coisas acontecendo, quando tive que fazer escolhas que foram fundamentais para meu crescimento. E a fase adulta em que olhava tudo ao meu redor acontecendo de forma muito rápida e tendo que controlar tudo para cair. Foi a fase em que encontrei minha companheira que me ajudou muito a seguir em frente e também veio minha filha que completou nossas vidas e provou que temos muito o que aprender e compartilhar.

E para finalizar, e suas aspirações?
Comecei verdadeiramente de baixo, sem suporte financeiro nem networking, construindo uma carreira e uma rede de contatos com estudo autodidata e oportunidades recebidas – algumas a pedido, quando me vi no lugar certo na hora certa, algumas por resultados do meu empenho em superar expectativas fazendo o que faço o melhor possível. Por isso, desde quando saí de Osasco, onde nasci, e posteriormente Jandira, onde fui criado e morei quanto adulto, e formei minha família na Granja Viana em Cotia, cidade acolhedora e arborizada onde constituímos nosso lar dos sonhos, aspiro perenemente a: honrar a parceria da minha esposa Vanessa, desenvolvendo e solidificando minha carreira como artista visual em que ela foi a primeira a investir e sempre prover para nossa filha Teresa; a exercitar minha criatividade continuamente, sempre buscando um novo projeto ou aprendizado ao dominar o anterior; a retribuir as oportunidades que já recebi ajudando a posicionar e recolocar talentos com poucas chances no mercado de trabalho pelo compartilhamento dos meus acessos e conhecimentos profissionais; e a produzir arte que atinja o máximo de pessoas por diversas plataformas, transmitindo uma mensagem para essas pessoas de qualquer parte do mundo que olhem minhas obras, independentemente – mas principalmente – se vieram do mesmo “lugar” que eu.

Por Juliana Martins Machado
Fotos: Vanessa Duque
Vídeo: Role Filmes

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