Enraizamento: um direito humano fundamental

Era nisso que acreditava a granjeira Ecléa Bosi.

Ecléa Bosi considerava o “enraizamento”, em um espaço ou em uma comunidade, um direito humano fundamental. “O desenraizamento a que nos obriga a vida moderna é uma condição desagregadora da memória”, afirmava a psicóloga e escritora, falecida em julho, aos 80 anos, em consequência de um ataque cardíaco.

Casada com o professor Alfredo Bosi, respeitado crítico e historiador de literatura brasileira, mãe de Viviana Bosi, professora de Teoria Literária, e de José Alfredo Bosi, professor de Economia, e avó de dois netos, Ecléa Bosi viveu por mais de 40 anos na Granja Viana. “Ela tinha um amor muito grande pela natureza. Gostava de morar onde pudesse ter horta, galinheiro…”, revela sua filha. De fato, conseguiu preservar um bosque no fundo de sua casa e plantou um pomar. Ecléa dizia que a vida era um pouco isso: plantar árvores frutíferas, pedindo a Deus que alguém estivesse lá depois para saborear os frutos.

Por aqui, foi a inspiradora de muitas lutas empreendidas para a preservação da nossa região. Sensível às transformações urbanas, participou ativamente do Movimento em Defesa da Granja Viana e tentou, por vezes, impedir a verticalização do entorno. Era sempre vista passeando, de mãos dadas com seu esposo, pelas ruas da Granja Viana. Era muito próxima da comunidade, participava das festas, tinha uma atuação política na defesa dos direitos humanos, escrevia artigos em mídia regional, era amiga da família Pompeia e de dona Irene Mayor e colaborava, sempre que possível, com entidades da região.

Professora emérita do Instituto de Psicologia (IP) da USP, Ecléa Bosi dedicou sua carreira acadêmica à Psicologia Social, conquistando diversos prêmios e reconhecimentos por sua dedicação ao estudo sobre memória e sociedade, como o Prêmio Internacional Ars Latina, em 2009. Entre seus principais livros, estão Memória e Sociedade (1994) e Velhos Amigos (2003). Neste último, reuniu histórias delicadas e envolventes nascidas das lembranças de velhos amigos.

“Em 1999, quando terminei de escrever o livro Memória & Imagem, com fotos antigas e depoimentos de antigos e velhos moradores de Cotia, usando como referência de pesquisa o livro Memórias e Sociedade – Lembranças de Velhos, escrito pela professora Ecléa Bosi, sonhava com a possibilidade de ela escrever o prefácio. Ao mesmo tempo, pensava, intimamente: imagina se, com a sua grandeza, esta pesquisadora escreveria algumas palavras em um livro que ela não orientou e escrito tão distante do mundo acadêmico! Sabe aquela coisa que o não a gente já tem? Marquei uma visita e, atrevidamente, fui à sua casa na Granja Viana. Recebido carinhosamente e com um saboroso café, depois de algumas perguntas, a professora Ecléa disse-me delicadamente e com algumas recomendações, que escreveria o prefácio”, relembra o historiador Marcos Roberto Bueno Martinez, o professor Marcão. Foi um belo presente para a memória da comunidade de Cotia: a carta conta um pedaço da História da Igreja e fala carinhosamente dos moradores antigos e velhos amigos que eles se relacionavam.

 

Carta de Ecléa Bosi

Cotia, 16 de março de 1999.

Meu caro Marcos,

Li, com muito prazer, as memórias dos velhos cotianos que você recolheu com atenção e carinho. Memórias risonhas, na sua maior parte, porque esses velhos transbordam de simpatia e amor pela vida. Tenho uma raiz muito funda que me prende a este lugar.

Meu avô, Amadeu Strambi, cultivava uva em São Roque; ali, no alto da serra, passei belos anos de minha juventude. Nas suas noites frias me aquecia no grande fogão de lenha no pátio da Matriz, onde se preparavam os pastéis, o quentão das festas e quermesses. Ao seu redor se apinhavam as crianças, e as velhinhas, embrulhadas nos xales, olhavam as chamas e recordavam os bons tempos. Aquele fogão de lenha era o coração generoso da cidade que pulsava. Mão impiedosa o derrubou. O pátio da comunidade hoje é estacionamento. Adeus, fogão de lenha… adeus velhinhas tiritantes, adeus memória!

Conheci dona Didita, mãe de dona Zizinha, esposa do sr. Amantino. Cega, costurava e cozinhava com perfeição. Mulher de rara inteligência, feliz de quem pudesse haurir a sabedoria de sua conversa. No casarão onde morou, na rua principal, tudo é venerável, desde as tábuas do assoalho até o espírito da família que, sei, conserva os altos valores de dona Didita.

Conheci, também, o casal admirável, Ana e Paulino Nascimento. Os “casos” do sr. Paulino eram notáveis; sua infância de menino de roça, quando o carro de Washington Luiz encalhou no barro da estrada… O presidente foi socorrido pela família do sr. Paulino, a quem prometeu recompensar com uma escola na região, mas acho que esqueceu depois o prometido.

Ela tratava os doentes com homeopatia, pesando as doses dos remédios nos pratos de uma balança com minúsculos pesos.

– Dona Ana, a senhora levou para o céu a sua balancinha dourada com que curou tanta gente?

E agora, evoco, por fim, aquela que foi a alma folclórica de Cotia. Dona Leonor, a que foi parteira e benzedeira. Tive o privilégio de visitá-la um dia, quando, sentada no leito, penteava seus cabelos; hora ideal para contar histórias e revelar segredos. Quem não assistiu às festas da capela de dona Leonor, no km 40? As ladainhas, toadas de viola, eram cantadas em latim por um “capelão” (as reformas litúrgicas não tinham lá chegando, ainda). Em mais de um livro sobre cultura popular foi descrita a beleza pungente daquelas devoções.

Dona Leonor, dona Didita, dona Ana, abençoem Cotia! Salvem a cidade das indústrias poluidoras, dos prédios que a desfiguram. Abençoem seu ar, suas águas, as matas que a rodeiam. A alma da cidade estava presa nos lugares saudosos que a ignorância e a ambição destruíram. Mas os velhos memorialistas, cujas lembranças lemos com encanto suave neste livro, ensinarão aos jovens a defender sua cidade.

E aqui me despeço, caro Marcos, de você e deles, com respeitoso afeto.

Ecléa Bosi

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