João Barbeiro: 67 anos de cortes, memórias e sabedoria na cidade de Cotia

Quem já teve a sorte de sentar na cadeira do João Barbeiro sabe que não está apenas cortando o cabelo ou fazendo a barba, mas embarcando em uma viagem no tempo pela história de Cotia. Aos 83 anos, pai de duas filhas e avô de 4 netos, ele é mais do que um barbeiro, é uma verdadeira enciclopédia ambulante da cidade.

Nascido em Sarapuí, comarca de Itapetininga, no interior do Estado, chegou a Cotia aos 16
anos de idade. “Minha irmã tinha casado e veio trabalhar na Calfat, fábrica de algodão. Ela me chamou para vir também”, relembra. O trabalho na fábrica não durou dois meses, porque sua vida se entrelaçou com a arte da barbearia.

Seu primeiro contato com as tesouras e navalhas foi no Mano a Mano, de Paulo José de Oliveira: “morava nos fundos do salão e ficava espiando ele trabalhar”. Foi assim, entre observações e afazeres como engraxar sapatos dos clientes, que Seu João aprendeu os segredos da profissão. Comecei a fazer a barba dos barbeiros, quando eles não tinham clientes, para aprender a dominar a ferramenta. E em apenas 3 meses, já estava com meus clientes”, lembra. A falta de visão em um dos olhos não o intimidou. “Eu aprendi um ofício que precisa da visão e consegui adaptar”, mostra resiliência e determinação.

O ano era 1957. “Quando aprendi, não existiam as máquinas elétricas, apenas manuais. Não havia Gillette, apenas navalhas. Era uma verdadeira arte e, às vezes, até sentia câimbras no pulso pelo esforço. Cortar o cabelo das crianças com essa máquina era especialmente difícil e desafiador”, conta rindo.

Em 1968, ele passou a ser dono do negócio, quando Paulo mudou-se para Santa Catarina. Com o passar dos anos, Seu João se tornou uma figura emblemática em Cotia, não apenas pelos cortes precisos e barbas bem-feitas, mas também por ser um contador de histórias nato. Sentado em sua cadeira, ele viu Cotia se transformar diante de seus olhos, desde os tempos em que a Raposo Tavares era o principal ponto de referência na cidade até os dias atuais de expansão e desenvolvimento. “Quando cheguei aqui, existia apenas uma farmácia e um médico que era o proprietário dela, o Dr. Waldemar Albano.

Naquela época, Cotia se resumia àquela rua central, a da Igreja da Matriz, que era a própria rodovia. Não havia bairros, postos de saúde ou hospitais. Quem ficava doente precisava ir ao Hospital das Clínicas. De um lado, a cidade era mato. E de outro, também. Lembro-me claramente da chegada das primeiras indústrias. Depois da Calfat, vieram a Genovesi, o Frigorífico e a CAV. Esses empreendimentos foram essenciais para o desenvolvimento e crescimento da região”, comenta.

Com Zé da Light, Zé Carlos e José Bosquete

Até a luz da cidade ele já ligou: “onde hoje é o Calçados Sergio, no centro da cidade, era a sede da Light, responsável pelo fornecimento de eletricidade naquela época. Tinha apenas um funcionário, que utilizava seu jipe para acender as luzes das ruas. Às vezes, quando ele saía para pescar, eu ia lá e realizava essa tarefa para ele. A iluminação pública começava próximo da Discovel e se estendia até o posto de gasolina do Atalaia. Havia dois relógios no meio do percurso, sendo necessário ligá-los antes do anoitecer e desligá-los de manhã. Fiz isso muitas vezes para ajudá-lo”.

Ao longo do tempo, presenciou mudanças significativas e se tornou uma referência para muitos. “Sem querer, eu fiz parte do desenvolvimento de Cotia”, comenta com humildade.

Entre os planos, está a ideia de preservar a história de Cotia através de um livro: “tinha um cliente de 90 anos, que faleceu recentemente, que sugeriu reunir alguns outros três ou quatro moradores da nossa idade para escrever um livro sobre a história da cidade. Eu disse que estou disponível sempre que desejarem, contanto que não adiemos demais esse projeto, afinal, o tempo não espera”.

Com quase 70 anos de profissão, ele ainda conserva clientes daquela época. “Tem um que
mora, hoje, em Guarulhos, mas faz questão de vir aqui. Comecei a cortar o cabelo dele com 4 anos e, hoje, ele está com 50”, sorri.

Cortando o cabelo do neto João: “gostaria que ele aprendesse meu ofício”

Atualmente, mesmo com a saúde requerendo mais cuidados – em breve, ele fará uma cirurgia para retirada de uma hérnia -, Seu João segue trabalhando, não por necessidade financeira, mas principalmente pelo prazer de estar entre amigos e clientes, compartilhando suas histórias e sabedoria acumulada ao longo dos anos. “Ouvindo e contando histórias. Isso é que é o bom da profissão”, resume. Quando não está por lá, esperando os clientes ou, simplesmente, sentado olhando carros e pessoas passarem, curte a natureza em sua chácara em Ibiúna.

Registro do salão

Houve um tempo em que ele marcava no caderno quantos fregueses servia, mas depois de um tempo, abandonou a prática. Se continuasse, talvez entrasse para o Guinness Book – “eu atendia, no passado, em média, 15 fregueses por dia”. Cortou o cabelo de muitos políticos e alguns até o convidaram para se lançar candidato a vereador, mas nunca aceitou. “Não me dou bem com essa ideia. Para a política, precisa ser bem mentiroso e isso eu não consigo”, explica rindo.

Quando questionado se gosta do que faz, ele não titubeia. “Adoro, porque só tenho essa profissão. Foi a única que aprendi”, ri. E completa: “ela me permite conversar bastante e sobre vários assuntos. Acho que é por isso que estou bom de cabeça”.

Com sua memória afiada e seu amor pela profissão, Seu João representa não apenas um barbeiro, mas um símbolo vivo da história e da perseverança de Cotia. Seu legado vai além dos cortes de cabelo, é uma parte essencial da identidade e da cultura local, uma história que merece ser contada e celebrada por gerações futuras.

Filhas Joice e Vanessa

Por Juliana Martins Machado

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