Para fugir da fome, Venezuelanos refugiam-se em Cotia

Sete famílias de refugiados venezuelanos estão morando no Jardim Claudio e Caucaia do Alto, em Cotia, outras estão em Vargem Grande Paulista e Ibiúna. Com a ajuda do projeto Mãos que Ajudam, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias, essas famílias iniciam vida nova

Por Sonia Marques

Ronald e Eliane, 38 anos cada um, junto com Rodrigo, 17, Paola, 14 e o pequeno Ronaldinho, com a camisa da seleção brasileira, de apenas 8 anos de idade, compõem a Família Flores que, até 16 de novembro de 2017, vivia na cidade de Barcelona,  capital do estado de Anzóategui, na Venezuela.

Em 18 de novembro de 2017, eles se somaram aos milhares de venezuelanos que vieram para o Brasil, mais precisamente para Boa Vista (RR), para fugir da fome e do desemprego, em razão da crise econômica que se abateu naquele país e se agravou desde que o ditador  Nicolas Maduro assumiu o governo.

Desde o final de agosto, eles vivem no Jardim Claudio, em Cotia. Juntos com outras seis famílias, vieram começar uma nova vida em Cotia, Vargem Grande Paulista e Ibiúna, com o auxilio do projeto “Mãos que Ajudam”, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Antes de se aventurarem para um país desconhecido, a família Flores tinha uma vida tranquila. Ronald  era um policial que passou a trabalhar com segurança privada. Chegou a cursar faculdade de administração de empresas, mas interrompeu no quinto semestre, quando nasceu o terceiro filho. Elaine é professora e pedagoga e atuava como coordenadora pedagógica na rede pública de ensino. Juntos, garantiam uma renda familiar de 803,5 mil Bolivares Fortes (BsF). Vale dizer que, deste montante, apenas 3,5 mil representava o salário da professora.

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Uma família como tantas outras: com casa própria, automóvel, filhos estudando, passeios aos fins de semana passeios e visita aos familiares. Isso começou a mudar drasticamente, a partir de 2016.  “Mas a crise mesmo já vinha se alastrando desde 2002”,  disse Ronald, em um português bem enrolado. “De repente, vimos os preços de alimentos e outros produtos essenciais para o consumo aumentando e o salário estagnado”, emendou Eliane. Não havia dinheiro suficiente para as despesas básicas da família, manutenção da casa, do carro e vestuário. “Não havia dinheiro para comprar comida, para nada”.

Ronald conta que, a partir de março de 2017, a situação piorou muito. Foi quando tiveram início os protestos de estudantes contra o governo Maduro e levaram multidões à ruas em completo descontrole.

A gota d’água para fazer com que ele e sua família decidissem sair do país foi quando, ao ir trabalhar, Ronald se deparou com as ruas de sua cidade todas fechadas e tomadas por manifestantes prós e contra o governo. Ocorre que na ocasião, segundo ele, o grupo contra o governo usava camisa branca, coincidentemente a mesma cor que ele estava vestido. Ele foi impedido de passar por grupos supostamente ligados ao governo, teve o celular retirado, foi agredido e obrigado a voltar, sem poder ir trabalhar.  “A cidade e o país estavam se tornando um campo de guerra, eram todos contra todos”, lamentou.  “As pessoas perderam o senso de solidariedade, de patriotismo, de tudo, era cada um por si”, completou Ronald, com voz triste.

A vida em Cotia e o projeto Mãos que Ajudam

Alex Sandro Brasil, representante da Estaca Cotia da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, com sede no Jardim Claudio, explica que “o programa teve início em Boa Vista (RR) com líderes locais que selecionam as famílias, membros da Igreja que já possuem toda a documentação necessária e respectivas vacinas em dia para que sejam encaminhadas para diversas cidades do Brasil, onde a igreja possui suas lideranças locais para dar todo o apoio necessário aos estrangeiros refugiados”.

Para trazer as famílias, a Igreja contou integralmente com doações de fiéis seja com roupas, móveis, utensílios domésticos e outros bens, seja com dízimo e  “oferta do jejum”, quando membros da igreja jejuam por 24 horas uma vez por mês e o valor economizado é doado.

Famílias venezuelanas desembarcam no aeroporto internacional de São Paulo com destino a Cotia

Até que a família consiga independência financeira, contarão com a ajuda do projeto da Igreja. Ronald já conseguiu um emprego por intermédio do Centro de Autossuficiência, uma espécie de agência de empregos para recolocação profissional dos membros da igreja. O venezuelano trabalha em uma empresa de transportes, mas confessou que espera um dia voltar a exercer sua profissão.

Felizes com a nova moradia, a família relembra momentos difíceis que passaram na Venezuela, o quanto foi difícil deixar tudo para trás, amigos, familiares e trabalho. Relembram também as situações de muita hostilidade que sofreram em Boa Vista, como preconceito e discriminação por parte dos brasileiros. E este foi o único momento em que os filhos se manifestaram para dizer que sofriam bullying na escola e nas ruas por não saberem falar a Língua Portuguesa corretamente, por serem estrangeiros e por tantos outros motivos. Ronald conta que chegou a arrumar o trabalho como ajudante, mas ganhava apenas R$ 20 por semana.

Em Cotia, a recepção foi bem diferente, relembram todos. “Fomos acolhidos com muito carinho, tanto pelos membros da Igreja como pelos moradores da vizinhança”, diz  Ronald que, impressionado, relembrou o dia em que ao caminhar pela rua com sua filha, recebeu um ‘bom dia’, fato que não ocorria em Roraima.

Ao serem perguntados se pensam em voltar um dia para a Venezuela, a resposta é certeira: “agora não, daqui uns sete anos talvez, se o Maduro deixar o governo”, disse Ronald. Mas talvez mudem de ideia, pois Ronaldinho disse que quer é ser brasileiro. “Aqui estamos vivendo muito melhor que na Venezuela, mesmo antes da crise”, comentou com ar de felicidade e sinal positivo dos demais membros da família.

Antes de concluir a entrevista, a família fez questão de servir à repórter uma fatia de “quesillo” – o tradicional pudim de leite condensado – e já deixou aberto o convite para experimentar um dos pratos mais típicos e populares da Venezuela, a Arepa, uma massa à base de farinha de milho cozida que pode ser comparada à tapioca brasileira.  “A Venezuela não é só o Maduro”,  finalizou Ronald.

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