Arte Observada: Bia Leite

Exposição com cerca de 270 obras de arte, em que questões de gênero, diversidade, queer e temáticas LGBT são tratadas, foi fechada.

Recentemente, o Santander Cultural de Porto Alegre cedeu à ignorância e fechou uma exposição com cerca de 270 obras de arte em que questões de gênero, diversidade, queer e temáticas LGBT são tratadas. A pressão veio de movimentos religiosos, o MBL e seus seguidores, que postaram matérias, textos e vídeos em suas páginas incitando o ódio, acusando o curador de perversão, ameaçando e agredindo verbalmente os visitantes e artistas em nome da moral e dos bons costumes do brasileiro.
O mais espantoso: a exposição Queermuseu: Cartografias das Diferenças na Arte Brasileira, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, que foi curador-chefe da 10ª Bienal do Mercosul, em 2015, simplesmente traz obras de Volpi, Portinari, Flávio de Carvalho, Lygia Clark, Alair Gomes, Adriana Varejão, artistas mais que consagrados, e uma série de fotografias, esculturas, pinturas, filmes, vídeos, colagens e gravuras de artistas contemporâneos e de todos os tempos.

Ou seja, os pseudo “liberais” atacam não só a liberdade de expressão, mas demonstram uma vasta incompreensão em relação à história da arte, crenças e valores. O nome disso não é liberalismo, é fascismo, literalmente. O direito de não ver é muito fácil de ser exercido em uma exposição: basta não a frequentar ao ser alertado sobre seu “conteúdo adulto” ou violento. Mas para os fundamentalistas é preciso censurar, impedir e destruir o direito de ver.

A máquina de retrocessos que está operando no Brasil é primária e boçal. Esse ato de ódio e intolerância contra artistas, contra obras, contra sujeitos que lutam para se expressar é o retrato não de tempos de “arte degenerada”, mas de uma sociedade doente e ignorante.

 

O que dizem os haters sobre a obra O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch (1504), tela extraordinária, exibida com pompa no Museu do Prado? O que dizem sobre os papas de Francis Bacon? O dizem eles sobre todos os corpos nus de anjinhos e deuses de Michelangelo na Capela Sistina? O que dizem eles sobre incontáveis obras de arte consagradas que desafiam o sistema, seja com a nudez, a diversidade ou questionamentos religiosos? Nada. Nada porque os mesmos não têm nenhuma educação cultural, nem mesmo sabem de sua existência. Não é certo criticar arte sem ter o conhecimento sobre arte.

 


Vamos Observar

Bia Leite

Série Criança Viada, 2013

100 x 100 cm

Tinta acrílica sobre tela

Algumas das obras mais atacadas na exposição foram as da artista cearense Bia Leite. A artista tinha duas obras da série Criança Viada na exposição, uma intitulada Travesti da Lambada e a outra Deusa das Águas. As obras foram feitas, esteticamente, de forma simples, com imagens coloridas sobre o fundo branco da tela, sem nenhuma sofisticação artística ou técnica. Aparentam até terem sido feitas por crianças. Nelas encontramos crianças sorrindo, como se estivessem posando para fotos. Os títulos das obras, feitos com estêncil, sobrepõem as imagens. As tela são leves, até um pouco cômicas. Estas foram acusadas de fazer apologia à pedofilia! Pasmem! Apesar de toda a reação, pouco se falou sobre o contexto da série, que ganhou prêmios e chegou a ser exposta no XIII Seminário LGBT, na Câmara dos Deputados, em Brasília, em 2016. O evento anual chegou a irritar a bancada evangélica e foi ameaçado por Eduardo Cunha, até então presidente da Câmara dos Deputados. Bia baseou-se em fotos de um antigo website (Tumblr) chamado Criança Viada, que recebia imagens de internautas quando crianças. A intenção, ela explica, era “celebrar esses traços que, durante toda a infância, foram motivo de xingamentos e violência. Nas telas expostas todas as crianças sorriem e o texto enaltece e empodera essas crianças desviantes – finalmente! – chamando-as de deusas ou nomes de super-heroínas. A linguagem da pintura também nos insere na história com orgulho e força diante de uma sociedade que nos quer invisíveis. Nós, LGBT, já fomos crianças. Esse assunto incomoda porque nunca viramos LGBT, nós sempre fomos. Todos nós devemos cuidar das crianças, não reprimir a identidade delas nem seu modo de ser no mundo, isso é muito grave”, observa a artista. Este ponto ainda traz outra coisa à tona: para os fundamentalistas religiosos, a homoafetividade é uma escolha de vida que pode ser até tratada (a famosa cura gay), e estas fotos de “crianças viadas” provam o contrário.  Para Bia, a exposição Queermuseu tinha caráter educativo ao propor um exercício poético sobre o preconceito e a diversidade de gênero. Um trabalho atento e delicado para se conversar sobre infância e a violência, abrindo vias de diálogo para a prevenção de futuras agressões.

Vivemos no país em que o topless é proibido, mas a ejaculação no ônibus é tolerada. Um país em que uma exposição dita profana é cancelada, mas o presidente da República é acusado e absolvido de diversos crimes, apesar de provas concretas. O país em que o professor não pode ter partido, mas pode ter igreja e fazer propaganda da igreja, mesmo na escola pública. Sabe o que é um crime contra a infância? Ensinar criacionismo nas escolas, a falta de creches, a fila do SUS, o salário mínimo, os 14 milhões de desempregados, a fome, a miséria, a violência crescente nas ruas e, principalmente, a corrupção, a mãe de todos os crimes citados. Brasileiro tem orgulho em dizer que adora crianças. Seis milhões de crianças no Brasil vivem em situação de extrema pobreza – muitas delas na rua. Ninguém parece tão chocado com isso quanto com a exposição do MAM. Se aprendemos qualquer coisa com a ditadura militar, sabemos que a arte nunca deve ser censurada. A arte é somente o reflexo da humanidade.

 

 

Por Milenna Saraiva, artista plástica e galerista, formada pelo Santa Monica College, em Los Angeles

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