Nascido no Jacanã em São Paulo em 1974, o jornalista Christian Carvalho Cruz trabalhou em algumas das principais redações do país, como as dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo e das revistas Placar, Quatro Rodas, Playboy, IstoÉ, Dinheiro e Revista da Semana. Morador da Granja Viana desde 2008, nestes quinze anos ele tem desfrutado acima de tudo do silêncio daqui. É neste espaço que ele se dedica a buscar histórias de vida incomuns de pessoas comuns para o Trombadas, projeto do Uol Tab que iniciou no meio da pandemia, em fevereiro de 2021, e que está celebrando 50 textos: “nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. Nas entrevistas, as pessoas falam das coisas que são as mais importantes para elas, sonhos, memórias, acontecimentos”. E escreve delicadezas. Durante a pandemia ele transformou o laboratório de revelar fotografias em um atelier de marcenaria, onde começou a fazer brinquedos para a neta, Clarice, com dois anos e meio, e hoje faz peças utilitárias, como luminárias e bancos.

 Como você veio para a Granja?
A irmã mais velha da Kati [a esposa e também jornalista Katia Geiling] tinha a filha, com seis meses a mais do que a nossa, na pedagogia Waldorf. Na época, morávamos na Vila Madalena e a Luzia estudava no Quintal do João Menino, que só tinha jardim da infância. No momento de colocar a Luiza no ensino fundamental, fomos ver o Sabin, perto do Parque dos Príncipes, mas acabamos nos decidindo pelo Colégio Micael. Tínhamos amigos que moravam aqui na Granja, a gente começou a vir para cá. Em 2008, nos mudamos. A Luiza tinha 10 anos e o Miguel, 4. Uma mãe da classe era corretora e nos ajudou a achar nossa casa. Faz 15 anos em novembro.

O que você mais gosta da Granja?
O silêncio da minha casa é a principal vantagem. Se bem que tem lugar aqui que é barulhento também [risos]. Aliás, quando me tornei avô comecei a mexer com madeira, a fazer coisas em marcenaria. Brinquedos para a Clarice. Foi durante a pandemia. Então, calhou. Agora, faço utilitários, luminárias, bancos, porta-lápis.

Marcenaria

Você é nascido no Jacanã, na zona Norte de São Paulo, um lugar tido por alguns como uma cidadezinha do interior. Tem algum paralelo?
O lugar que eu moro é difícil de ver pessoas na rua, só se sai de carro. Tem pouca convivência. Tô há 15 anos aqui, conheço três vizinhos. Mudou os tempos, o tempo das pessoas. A Granja mudou muito também. Passou por um processo de “alphavilização”. Quando eu mudei para cá, ainda era um lugar classe média, meio “esnobe” às vezes. O Jaçanã é mais autêntico. É cheio de problemas como todo lugar. Mas tem mais vida na rua. Os problemas de lá são outros, de fato não tem o silêncio [que aprecio] da Granja. Embora não seja barulhento como Pinheiros. Há essa autenticidade das pessoas. Gira uma relação mais desinteressada entre elas. O verde daqui ainda atrai muita gente nova, movimento que na pandemia aumentou muito. Mas as pessoas que acabam ficando reclamam das coisas boas daqui. Minha rua não é asfaltada, por exemplo. As pessoas reclamam disso. Querem trazer São Paulo para cá.

O trânsito é um quebra-gelo de conversas aqui, não é?
Se tem um emprego que precisa estar em São Paulo às 9h, vai passar a vida parado na Raposo. Se puder fazer home office ou estar no contrafluxo, tudo bem. Quando eu trabalhava no jornal O Estado de S.Paulo, meus horários já eram alternativos, então não era um problema percorrer os 30 km.

Detalhe da mesa de trabalho

Por que jornalismo?
No final do ano, faço 30 anos como jornalista. Me formei na PUC de São Paulo, em 1993. Faz 30 anos que eu vivo de escrever. O pouco que conquistei, criei meus filhos, comprei minha casa, se deve ao jornalismo. O que me dá orgulho. Fui fazer jornalismo para escrever, nesse país que dizem que não se lê. Se a gente vai fazer revista partindo da premissa que ninguém lê, é melhor não fazer. As pessoas leem. Eu me orgulho muito da minha profissão.

O Uol Tab, onde você atualmente faz a coluna Trombadas, se define como “repórteres na rua em busca da realidade”.
No início, eu fotografava a cidade, não as pessoas. Até que um dia na rua da Glória tinha um rapaz parado numa portinha que me lembrou um tio meu. Aí eu atravessei a rua e pedi se podia fazer o retrato dele. Era um cara alto, careca, de bigodão. O Bisteca. Ele foi o primeiro Trombadas. Era um salão de sinuca. Eu fiz umas fotos. Depois, voltei para dar as fotos de presente e me sentei com o Bisteca e ele me contou a história dele, nem lembro mais se gravei. E comecei a achar que a fotografia tava pouco. Meu desejo era não ter desejo e contar a história da pessoa do meu jeito. As histórias passam por mim, embora seja na voz das pessoas. Tinha a do Silvio Roberto, um caseiro de amigos de São Lourenco, Minas. Era o máximo, superengraçado. Eu ia colocando este material no Medium [uma plataforma híbrida online para publicação de jornalismo social, fundada em agosto de 2012 pelo cofundador do Twitter, Evan Williams], que para mim é como se fosse um portfólio. Aí, em um determinado momento, um amigo foi procurado por uma revista que ia ser lançada e queria uma seção de gente. Ele me indicou para o piloto [projeto inicial] desta revista. Não deu certo a revista, mas o Uol Tab estava passando por um relançamento e a editora chefe, Olivia Fraga, tinha sido minha colega no Estadão e me procurou para ver se eu tinha uma ideia. Negociamos e faço até hoje. São dois anos de colunas, duas por mês, 24 por ano. Estamos comemorando os 50 textos só de Trombadas. O legal do UOL é que é um canhão, a repercussão é muito grande.

Com os personagens do Trombadas

Começou em fevereiro de 2021.
Sim, no meio da pandemia. Tinha dificuldade de as pessoas entenderem o Trombadas. O jornalismo está indo na fila de posto de saúde, procurando gente. Eu quero fazer diferente, sempre quis estar nas beiradas. Já tem muita gente fazendo [o jornalismo convencional].

Você acha que o que você escreve é jornalismo?
Sou jornalista há 30 anos e, tirando uma tentativa vagabunda ou outra de escrever ficção e a coluna Trombadas, que contém jornalismo, mas não é jornalismo (e também não sei o que é), tudo o que escrevi nesse tempo e ainda escrevo é jornalismo.

Um porteiro do residencial Vila Diva, aqui da Granja, foi um dos personagens da sua coluna Trombadas. Como foi a conversa com ele e que histórias ele revelou sobre o bairro?
Acho que você se refere ao seu Milton, figura adorável que conheço há 15 anos. Ele contou do espírito de um índio que mora na mata atrás do Armazém do Nicolau, de uma misteriosa bola de fogo que vagava à noite perto do residencial Inpla, de um filhote de urubu que ele criou e pegou chamego, do sumiço de alguns passarinhos provocado pelo incansável desmatamento e muitos outros causos.

Tem mais pessoas da região que já foram retratadas em suas colunas?
Muitas. Tem o caseiro Beto, o marceneiro Clébison, o antiquário Marcelo Tarzan, a Rosângela do Bar da Japonesa Preta, o Bil do Armazém da Natureza, a Josiane da Café Contexto, o Wagnão, contrarregra no circo Zani, o Sidney do Galpão do Rádio, o imigrante haitiano Arnold e alguns outros.

Parafraseando o título de um livro seu, quando a notícia é só o começo de uma boa história?
Quando o jornalista se dispõe a contar essa história permitindo que a imaginação, a liberdade e a curiosidade, não os clichês, conduzam a sua pesquisa que, no jargão das redações, chamamos de apuração.

Como é seu processo de escrita?
Levo cada vez mais tempo para escrever. Estou gostando de ter mais tempo, de fazer os textos com um tempo mais alargado. Quando saí do Estadão, comecei a ir para São Paulo para fotografar com câmera de filme. Eu tinha laboratório, revelava em casa.  Ainda tem lugar que vende filme, mas ficou muito caro. Tenho alguns rolos antigos no congelador para não vencer. Hoje, uso uma Fuji digital. Gosto da coluna porque não tenho regras. O jornalismo é cheio de pode-e-não-pode. Eu estava cansado disso, estava cansado até para escrever.

Qual seu método de escrita para trombar com pessoas?
A maior parte do começo era trombada mesmo. Me interessava por alguém. É o choque com as coisas. Eu fico impressionado, tocado. Daí tudo começa. O mais recente foi uma história do bairro da Pompeia. Uma vez passei na frente de um bar cheio de prateleiras e pensei, “que legal. Um dia vou voltar aqui para ver a história deste bar”. Agora estou trabalhando a história de um lugar cheio de coisas, manequins, na Raposo Tavares. Eu passava por ali no portão vermelho e via o japonês cabeludo branco, sempre sentado na porta. Que figura! Ele é muito queimado. Fica tomando sol o dia inteiro. No fundo, é só ter um pouco de paciência e querer ouvir. Tem algumas vezes que eu faço a escuta, mas não consigo encontrar a história na hora. É preciso achar a história que tem lá dentro. Jornalismo seria uma transcrição somente. Pode se tornar chata, enfadonha. Eu não quero isto. Tem uma construção, uma tentativa de construção literária, um trabalho de texto. Embora sejam informações reais, vou construindo. Não estou interessado em checar nada. Só me interessa o que a pessoa tem para me contar. Igual um retrato fotográfico. Tirar uma foto da pessoa naquele dia. Não quero fazer a biografia. Embora muita gente conta a história da vida dela.

Você gosta de recursos novos como o podcast?
Já editei podcast quando nem era moda. Em 2002. Vinte anos atrás. Era o Caroço, podcast bom de bola. Adoro futebol, mas não jogo nada. Trabalhei na Placar, que é o universo do futebol e muito rico de histórias. Quando entrei na Abril, a Marilia Scalzo me perguntou onde eu queria ficar e respondi, Placar, porque lá achava que era onde dava para escrever com mais autoridade. Na Veja é um padrão, tudo igual.

O rádio foi importante na sua formação?
Na casinha onde nasci, a janela dava para a área de serviço que foi acrescentada. Com o radinho em cima do armário, minha mãe ouvia o Gil Gomes cuidando da casa. Era o dia inteiro o rádio ligado. Vera Lucia, minha mãe, faz 70 anos. Meu avô ouvia muito Zé Bétio. “Joga água nele”. Minha imaginação era do rádio, eu ficava ouvindo e imaginando. Na minha casa, a gente sempre contou história para as crianças, sempre teve livro à mão. Com Clarice, minha neta, usamos livros infantis, pequenininhos. Outro dia, a Katia comprou para ela um que ela adora, com bichinhos. Nessa coisa de imaginar. As narrativas são bem vivas em casa, sempre foi.

E de seu pai, que característica herdou?
Meu pai sempre muito simples, trabalhador brasileiro, isso nunca foi um problema para ele. Só estudou até a quarta série. Para ele, ter um emprego e sustentar a família era muito importante, ele sempre teve muito orgulho disso. Trabalhou por 50 anos em padarias. E do outro lado do balcão tem vários sotaques, várias origens. Aprendi a dedicação ao trabalho que meu pai tinha, aquela coisa bonita que demorei para entender. Lá eu era o Chiquinho, o filho do Chico. Com ele, aprendi quais coisas são importantes: as coisas e as gentes simples da vida. Faleceu em 2013.

O Trombadas, no fundo, traz estas coisas importantes que aprendeu com seus pais?
Com meu pai, aprendi o exercício de empatia, generosidade, de falta de julgamento, ou de maneirar o julgamento. Tem Trombadas com ex-traficantes. Eu estou lá para ouvir. Meu pai acreditava nas pessoas, porque ele era bom. Uma pessoa que eu não consigo ser. As pessoas falam das coisas que são as mais importantes para elas, sonhos, memórias, acontecimentos. O jornalismo parece que não quer saber disso. Vejo pelo retorno dos leitores, dos comentários… são muito legais. Meu interesse é o de proporcionar para quem está lendo uma boa leitura. Eu me encanto com isto. Do mesmo jeito que me encantava ouvindo as histórias do Gil Gomes. Isso me deixa satisfeito, estou cumprindo meu papel. Como jornalista, sempre fiz esta experiência da leitura boa. Cada texto tem de 10 a 12 mil caracteres. O compromisso que meu pai tinha era o de tocar direito uma padaria, o que ele fazia com tanto capricho, com tanto orgulho. O meu compromisso é com a escrita.

Família é algo importante para você?
Sim. Sou casado com a Katia, pai da Luiza, que se formou no ano passado em Letras na USP, fez linguística e trabalha com marketing digital. Ela queria fazer jornalismo e foi estudar no Giordano Bruno e se encantou com professora de literatura. Ela queria dar aula, acho que quer ainda. Miguel está concluindo o ensino médio este ano e quer fazer psicologia.

Você faz terapia para se entender e entender os outros melhor?
Sim, de abordagem junguiana. Mas eu acho que tem uma pontinha de mistério na escrita que eu não quero desvendar muito. Não estou falando que é dom, é mais trabalho que isto. Eu releio, às vezes, as coisas que escrevo e me pergunto como consegui escrever isto. Sempre acho que podia ter feito melhor. Mas tem vezes que gosto. Ficar elaborando muito conscientemente em cima torna mais difícil do que já é [risos].

Você tem dois livros publicados. Está para escrever outro?
Sim, tem o Entretanto, foi assim que aconteceu: quando a notícia é só o começo de uma boa história, lançado pela Arquipélago em 2011, que reúne 23 reportagens. Em 2022, fui convidado para escrever Entre tantos, pela Coordenadoria de IST/Aids da cidade de São Paulo, [que traz a história de vida pessoas que vivem e convivem – de alguma forma – com HIV na maior cidade do Brasil. O livro pode ser baixado gratuitamente [clique aqui]. Já me chamaram em editora grande para publicar livro inédito de histórias reais não ficção. Mas por enquanto é difícil parar tudo para escrever.

Quais são seus novos projetos?
Tem um diretor brasileiro que me consultou para criar monólogos a partir dos textos publicados no Trombadas. Achei legal, estamos conversando.

Em abril, a Revista Circuito completou 23 anos de atuação em jornalismo regional. Qual a importância de um veículo, como o nosso, para reforçar o senso de pertencimento ao lugar onde se vive?
O jornalismo regional, como qualquer jornalismo, é fundamental quando jornalismo. Coisa rara no Brasil, pena. Mais comum são propostas meramente comerciais, e aí me parece mais comércio do que jornalismo. Parabéns à Circuito pelos 23 anos.

Entrevistando Pelé na Copa de 2014

Como você avalia o papel do jornalismo, nos dias atuais?
No Brasil, precário e precarizado.

Como as fake news impactam o jornalismo no século 21?
A maneira de editar um jornal, colocando ênfase aqui e tirando dali para destruir reputações ou reforçar preconceito de classe, por exemplo, pode ser considerada fake news? Essa discussão me interessa mais do que as ridículas mamadeiras de piroca. Mas é conversa pra tempo e espaço longos.

ChatGPT ou outra inteligência artificial desafia nossa profissão?
De maneira nenhuma. Se é para escrever com ideias prontas, medíocres e inofensivas, sem fazer pensar, sem gerar questionamento, apenas se adequando e se entregando ao cliquismo, que nada tem a ver com jornalismo, é uma ferramenta perfeita.

Qual futuro do jornalismo?
Não faço a menor ideia.

Para finalizar, como você se vê hoje?
Eu sou o avô da Clarice, de 2 anos e meio. Me basta ser o avô dela [risos].

Por Monica Martinez

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