Vinho de Mesa, o injustiçado

Nosso colunista Didú Russo escreve sobre os vinhos de mesa, que representam 67% de todo o mercado de vinho no Brasil.

No Brasil, o vinho líder de consumo, a preferência nacional é o chamado vinho de garrafão, o vinho “de mesa” que não é produzido com uvas do tipo vitis-viníferas, as uvas que se usam para produzir os chamados vinhos finos.

Porém eles são sempre esquecidos pela imprensa e pelos próprios produtores que fazem dinheiro com ele mas querem ficar famosos fazendo vinhos parecidos com os chilenos ou europeus.

O próprio Setor do Vinho, suas entidades oficiais que falam em seu nome, usam os números do vinho de mesa apenas quando lhes interessa. (Veja isto também) Se é para engordar número de consumo, ele entra, afinal com ele, os vinhos nacionais representam 73% do consumo de vinho no Brasil (6% de vinhos finos e 67% de vinhos de mesa). Se for para ir ao governo pedir ajuda, cita-se os números de todas as famílias envolvidas, mas quando sai a ajuda, ela vai para o vinho fino… Uma vergonha.

No governo o mesmo. O Vinho sempre foi um nada para eles, não é considerado um alimento funcional como deveria ser (Leia isto), e sua carga de impostos é simplesmente o dobro da de qualquer país vizinho produtor de vinho.

Esses vinhos de mesa representam 67% de todo o mercado de vinho no Brasil!! Significa dizer que de cada 100 garrafas de vinho, 67 são de vinhos de mesa, produzidos a partir de uvas americanas ou híbridas.

Entre as espécies americanas, apenas três apresentam variedades cultivadas: Vitis labrusca, Vitis bourquina e Vitis rotundifolia.

O Brasil tem inclusive uma IG (Indicação Geográfica) de hibrida de ótima qualidade, os Vales da uva Goethe , em Santa Catarina. Originada a partir do cruzamento de viníferas (87%) com videiras norte-americanas (13%). O experimento foi realizado por Edward Stanniford Roger, nos Estados Unidos, em 1858. Cruzamento da Cartet com Moscato de Hamburgo e Schiava Grossa.

As híbridas são o resultado de cruzamentos de castas de vitis vinífera com vitis-labrusca ou americanas. Isso pode ser desenvolvido em laboratório, caso da Goethe ou da Lorena por exemplo (cruzamento da Malvasia Bianca com a Seyal, em 1986 pela Embrapa), ou espontaneamente.

Vitis labrusca, Vitis bourquina, a Vitis riparia e a Vitis rupestres. Esses são os nomes científicos das espécies de uvas que conhecemos normalmente como Itália, Rubi, Thompson, Niagara, Isabel, Bordô, Niágara e Concord. Exatamente aquelas que encontramos no supermercado!

A imprensa do vinho pouco fala desses vinhos, considerados “menores” erradamente, na minha opinião. Trata-se de um preconceito, baseado em alguns fatores:

1) Os vinhos de mesa não resultam em vinhos de guarda, não serve para você colecionar safras, aguardar evolução, etc. São vinhos para se consumir jovem.

2) A grande maioria dos vinhos de mesa são vinhos muito simples, de muito volume e ainda muitos adocicados com adição de açúcar.

3) As características aromáticas e gustativas desses vinhos é bastante distinta dos vinhos finos. Especialmente o    * “foxado” que que sente ao nariz.

4) Os europeus proibiram o plantio de vinhas americanas e a produção de vinhos. Inclusive espalharam um boato de que ele teria muito metanol e causaria cegueira… um absurdo, pois não é verdade.

Entende-se, pois não podemos esquecer que a **“Phyloxera foi levada a Europa pela importação dessas castas americanas.  Leia abaixo.

Mas isso não procede, embora no Mundo todo se dissemine essa história, inclusive no Brasil. Há questão de uns anos andaram criticando muito os vinhos de mesa, pois alguns produtores “naturebas”  brasileiros como a Lizete Vicari, o Eduardo Zenker, o Boroto, os Faccin entre outros, começaram a fazer sucesso com vinhos bem feitos dessas uvas. Começou essa história de cegueira de metanol e outras críticas.

Dra. Regina Vanderlinde 

Na ocasião procurei a doutora em enologia Regina Vanderlinde, (Veja entrevista que fiz há pouco com ela) que à época era a primeira representante do Brasil na Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), organização hoje presidida por ela, para esclarecer essas questões.

Ela trabalhava como secretária-científica da Subcomissão de Métodos de Análise de Vinhos. Foi aprovada por unanimidade por todos os representantes dos países que participam da OIV, portanto, a opinião dela não é de embasamento pessoal, mas científico.

A Regina era também professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e gerente-geral do Laboratório de Referência Enológica (Laren) da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Agronegócio, mantido em parceria com o Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin). Segue a entrevista:

Didú: Os vinhos de mesa fazem mal à saúde como alegam muitos críticos?

Dra. Regina: Não fazem mal à saúde de jeito nenhum. As uvas Vitis labruscas podem conter mais metanol esterificados em suas pectinas, mas como o tempo de maceração é muito curto, ele não é extraído em altos níveis. O tempo de fermentação e, portanto, de maceração desses vinhos é menor, diferente dos vinhos de vinífera que têm um tempo de fermentação mais longo. Em todos estes 30 anos em que trabalho com química analítica de vinhos raramente vi um rótulo com valor superior ao limite de 350 mg/L, que é o determinado na legislação brasileira. Ao contrário, muitas vezes esses vinhos têm menos metanol que os de vinífera, bem como muito menos metanol que outras bebidas destiladas. Não há nesses vinhos outros compostos diferentes dos de viníferas que possam causar algum transtorno à saúde. O que incomoda é o aroma do metil antranilato, caracterizado como “foxé”, mas que não provoca dano à saúde.

Didú: Os conhecidos benefícios à saúde que conhecemos, pela ingestão parcimoniosa e regular do vinho fino, acontece também com a ingestão dos vinhos de mesa?

Dra. Regina: Sim, esses vinhos também têm antioxidantes e resveratrol, que são benéficos à saúde.

Didú: Certa vez em Portugal, um enólogo da Quinta da Aveleda me disse que na Europa proibiram vinhos de não viníferas, pois na fermentação produziam um subproduto cancerígeno. Isso procede?

Dra. Regina: Os vinhos Vitis labrusca não contêm substâncias cancerígenas. O aroma pode não agradar a muitos consumidores, porém, não há cientificamente nenhuma diferença para a saúde humana entre esses vinhos e os de Vitis vinifera. A Europa proibiu esses vinhos por causa do aroma “foxado” que, como você sabe, vem de “fox”. Trata-se na verdade do aroma do antranilato de metila, éster típico de uvas Vitis labrusca e seus híbridos. Com medo de desvalorizar seus produtos e da perda das denominações de origem, resolveram banir esses vinhedos que, após a crise da filoxera, foram introduzidos na Europa. Mas, exceto pelo aroma característico, eles não prejudicam a saúde. Se assim fosse, o Codex Alimentarius não permitiria os sucos de uva de Vitis labrusca, bem como os vinhos produzidos em países importantes, como os Estados Unidos.

 

Então vejam, a mídia especializada do vinho torce o nariz para aromas fora do padrão que aprenderam nos cursos para sommelier, também não gostam de vinhos de castas menos nobres como as Labruscas. Os cursos ignoram esse vinho. Há quem diga que “isso não é vinho”, outros riem de lado. Porém eu pergunto, está certo ignorar o vinho que tem praticamente 70% do mercado brasileiro?

Eu não tenho preconceito e principalmente não me prendo aos padrões europeus de avaliação do vinho que buscam a penalidade da bebida. Avaliar um vinho hoje é procurar defeitos e não qualidades.

E devo dizer que é bastante comum ser interpelado por consumidores na rua, no mercado, na praia que vêm me pedir indicação de vinhos de mesa seco. Claro, estamos falando de um padrão cultural e também econômico. Afinal, no Brasil não temos vinhos finos a preços de cerveja como acontece no vizinho Uruguay ou Argentina.

E o que tenho visto é o retumbante sucesso desses vinhos que citei acima, em feiras a que comparecem, inclusive no exterior. Aliás encontra-se mundo afora castas americanas como nas Canárias, nos Açores, na Itália e até  na Georgia.

Na minha opinião o Brasil não deveria ignorar esse vinho que é líder de mercado, seja por razões culturais, seja por fatores econômicos.

 

O termo “foxado” vem do inglês “foxy” e descreve um aroma terroso e adocicado, associado pelos europeus a pêlo de raposa (fox em inglês). No Brasil, o reconhecemos como o aroma de suco de uva, típico das “uvas de mesa” Concordia, Isabel e Niagara.

 

** A Phyloxera Vatraxtis foi uma praga que atacou as videiras europeias por volta de 1885. Demourou-se a descobrir que a solução para o problema estava na enxertia. Hoje os vinhedos europeus têm um porta-enxerto com raízes de vinhas americanas que são resistentes a ela.

Poucos sabem, mas a phyloxera seccionava as raízes das vinhas de vitis-viniferas que não reagiam e sucumbiam. As raízes das americanas ao contrário, quando atacavam as raízes, elas reagiam e criavam várias novas raízes acima desse corte. Assim ele acaba por fortificar a vinha. Essa a razão para que os porta enxerto de americanas funcionem.

Há também um sistema de matar a phyloxera por afogamento. Vi isso nos vinhedos de Mendoza da Terrazas quando o enólogo era o grande Roberto Dela Motta. Eles faziam sulcos no solo entre as videiras e enxarvacam com água por semanas e a phyloxera morre por afogamento.

 


 

Didú Russo é editor do site www.didu.com.br, está no facebook (www.facebook.com/didu.russo/) e no Instagram (www.instagram.com/didu)

Artigo anteriorVacinômetro mostra em tempo real número de vacinados
Próximo artigoHistórias de Roque Giannetti